Mais uma HQ biográfica? Mais uma HQ biográfica em que o protagonista tem a vida mais difícil do mundo? Mais uma HQ biográfica em que o protagonista tem a vida mais difícil do mundo... nos campos de concentração nazistas?
Dá pra entender que o tema do Holocausto provoque um certo cansaço depois de tantos filmes, tantos livros e tantas HQs sobre a Segunda Guerra Mundial - afinal, é uma das mazelas que a sociedade moderna ainda não conseguiu entender, ou mesmo assimilar, por completo. Mas calma lá. É importante ver o que se conta em torno do tema, e também como.
No caso de O Boxeador, graphic novel do alemão Reinhard Kleist, os campos de concentração são cenário importante. Hertzko Haft, o biografado, foi um judeu polonês que passou por Poznan, Strzelin e pelo tenebroso Auschwitz-Birkenau. Passou também pelos clichês que você conhece: o número de registro tatuado no braço, ser tratado como um bicho, tendo que se virar na esperteza (e até na crueldade) para não morrer de fome e, por fim, tendo a sorte de recomeçar a vida.
Mas o diferencial na história de Haft é que, por uma dessas sortes ou acasos, ele caiu nas graças de um oficial da SS que resolveu que ele seria boxeador. De cabelos raspados, esquelético, mal segurando-se em pé, ele teria que lutar contra outros prisioneiros na mesma condição para entretenimento dos soldados nazistas.
Mais curioso ainda é que a carreira cruel nos ringues improvisados levou à carreira séria de pugilista nos EUA, país para onde Haft se mudou logo após a Guerra. Ele fez sucesso nos ringues de Nova York e teve seu auge numa luta contra o famoso Rocky Marciano, que estava em sua própria escalada rumo ao título de campeão dos pesos pesados.
A graphic novel de Kleist baseia-se no livro Harry Haft, escrito pelo filho do pugilista, Alan Scott Haft, e inédito no Brasil. Kleist, conhecido por biografias em HQ de Johnny Cash e Fidel Castro, voltou-se para um personagem menos famoso, mas com uma história certamente incomum. Não é qualquer biografia em campo de concentração, afinal.
O Boxeador é bastante simples em termos de narrativa, se comparada a grande parte das graphic novels atuais e mesmo a quadrinhos de super-herói. Fora um trecho logo no início que bebe explicitamente em Will Eisner - sem requadros, com traço bem expressivo e personagens caricatos -, Kleist foca na clareza para contar a vida de Haft. É pensado, talvez, para o público ainda pouco acostumado aos quadrinhos; o grande público alemão ainda está descobrindo as graphic novels, assim como acontece no Brasil.
Outra referência inevitável da obra é Maus, a conhecida graphic novel em que Art Spiegelman contou a experiência de seu pai em campos de concentração. Spiegelman foi sem dúvida mais ousado, tanto por transformar seus personagens em animais quanto por explorar a linguagem das HQs. Mas Kleist também se permite algumas experimentações: numa cena de provocar pesadelos, Haft vê prisioneiros do campo literalmente canibalizando outros colegas. É quando a desumanidade atinge um nível tão grande que o traço fica mais grosso, pesado e, como convém, desumano.