Elektra, em sua fase atual... |
... e o começo de tudo, DD168. |
DD165, Miller assume os roteiros |
DD169, entra em cena o Mercenário |
DD171 - A revista volta a ser mensal |
DD174 - Elektra retorna |
DD 181, edição dupla |
DD 190, edição dupla |
Elektra Assassina |
Elektra Assassina |
DD e Elektra, no traço de Miller |
Elektra Vive |
Elektra Vive |
A história de Elektra confunde-se como o primeiro período em que seu criador, Frank Miller, roteirizou a revista Daredevil. Em maio de 1979, este hoje renomado quadrinhista era um ilustre desconhecido e havia se tornado o rabiscador do referido gibi em seu número 158. Novato que era no meio, recebeu a tarefa de desenhar uma publicação decadente que, apesar de já ter contado com o lápis de Gene Colan, jamais fora uma potência de vendas.
Naquele tempo, Daredevil ia mal das pernas. Após anos de equívocos editoriais, o título tornara-se bimestral. Em outras palavras, tratava-se, então, do primeiro passo rumo ao cadafalso do cancelamento. O segundo indício de que as coisas não iam bem foi incumbir um novato Zé-ninguém de ilustrar a revista.
O roteirista do título, na época, até que não era mau. Roger McKenzie vinha, havia meses, tentando reverter a derrocada, mas o destino do Demolidor parecia irremediavelmente selado. Em breve, o Homem sem Medo engrossaria as fileiras de heróis sem-gibi que amargam nos porões do Universo Marvel.
Hoje, 24 anos e uma superprodução hollywoodiana depois, todo aficionado de quadrinhos, inclusive quem nem tinha nascido na época, sabe que a história seguiu por um caminho muito diferente.
Neste artigo, minha intenção é ressaltar uma faceta dessa virada rumo ao sucesso, talvez a mais importante: a vida e a morte de Elektra Natchios ou como uma ex-namorada ajudou o Demolidor a chegar ao panteão dos super-heróis de primeira grandeza.
O SAL DA TERRA, A RALÉ DAS RUAS
A partir da edição 168 da revista Daredevil - após ter conquistado os leitores, nos meses anteriores, com seu traço ágil, fortalecido, com seus palpites, os roteiros de McKenzie -, Miller assumia por completo as lides de argumentista da revista Daredevil.
Era janeiro de 1981. Como se para marcar esta nova condição, introduziu uma cria inteiramente sua: Elektra, a perigosa assassina de aluguel que, anos antes, havia namorado o ainda aluno de direito Matt Murdock. Tudo isso ficamos sabendo por meio de instigantes flashbacks. Filha de um diplomata grego, a jovem havia se apaixonado por Matt Murdock, mas, após a morte do pai num atentado terrorista, afastou-se de tudo e de todos para seguir a trilha dos assassinos.
A chegada dessa anti-heroína ao título do Homem sem Medo teve, a meu ver, ares de um ritual de passagem. Como Eva, que ofereceu o fruto da árvore do conhecimento a Adão, e sua contraparte babilônica a prostituta Shamhat, que seduziu Enkidu, a enigmática ninja grega surge na vida do Demolidor para marcar o novo status quo de Miller nos roteiros - e consagrar uma nova e gloriosa fase na vida do nosso herói cego. Não podemos nos esquecer de que, na visão deste autor, o Homem sem Medo era o paradigma do catolicismo nos super-heróis.
Desde que passou a colaborar nos roteiros - assumidamente a partir da edição 165 de julho de 1980 - esse então enfant terrible das HQs vinha alterando o perfil da série acrescentando novos elementos, urbanizando de vez seu protagonista, comprometendo-o ainda mais com Nova Iorque (Miller jamais aceitou a ida de Matt, anos antes, para São Francisco) e anoitecendo o clima das histórias até abandonar o luminoso e repetitivo padrão super-heróistico da Marvel nos anos 70 - uma verdadeira camisa de força narrativa.
A nova ordem punha para escanteio os obrigatórios supervilões e centrava fogo na trama policial. Agora os bandidos eram a arraia miúda das ruas ou, então, os potentados do crime organizado. Os supermeliantes do passado, bem como o restante do Universo Marvel, funcionavam apenas como um tênue pano de fundo, um questionável atrativo para o leitor habitual de super-heróis. Nós sabíamos que eles estavam lá, mas apenas como lembranças de outros tempos.
O Demolidor encontrava-se agora num território à parte, um mundo que os demais cidadãos supra-humanos do Universo Marvel não freqüentavam e, se o fizessem, seria nas condições de Miller; haja vista que, dois meses antes, na edição 167, como um derradeiro adeus à situação precedente, o Demolidor enfrentou Mauler, o último vilão nos moldes convencionais (ao menos enquanto Miller foi o roteirista). Depois, apenas o sal da terra ou a ralé dos becos e quebradas da cidade grande teriam vez nas páginas do gibi.
TIRANDO O FÔLEGO
Não preciso dizer que, com sua breve aparição, a misteriosa ninja deixou todos os leitores boquiabertos, pedindo mais. Eu mesmo fiquei extasiado. Já em seus primórdios como roteirista, Miller sabia enfeitiçar o leitor. Todavia, nunca foi desses escritores que fazem tudo para agradar o fã. O novo dono do pedaço decidiria quando trazê-la de volta e sob que circunstâncias.
O roteirista não dava ponto sem nó. Elektra não era apenas uma um rostinho bonito criado para ajuda-lo a cumprir sua cota de páginas mensais. Foi incluída no mito do Demolidor com um intuito muito específico: o de servir de combustível narrativo até o número 190 de Daredevil. Certamente, o autor não devia ter tudo arquitetado desde o princípio, mas acredito, pela forma como as coisa foram se encaixando, que um plano geral estava esboçado. A partir de um conceito básico, foi fácil para Miller agregar elementos novos, enriquecendo a trama e cativando o leitor.
A meu ver, Elektra fazia parte de um quadrado cujos vértices eram quatro personagens-pivô: o protagonista da série - o Demolidor; a encarnação do crime organizado - o Rei; o vilão desregrado e imprevisível - o Mercenário; e ela própria, misto de interesse amoroso e arauto da morte.
As edições seguintes trataram fundamentalmente dos desenvolvimentos e conflitos entre esses quatro elementos, proporcionando ao leitor uma teia de aventuras de tirar o fôlego.
A propósito, Tirar o fôlego é o ponto-chave das histórias do Demolidor daquela época. Como Tchaikovsky na música, Miller sabe manipular as emoções básicas do leitor. Tal qual o compositor russo, é mestre em trabalhar sensações para arrebatar completamente sua audiência. A exemplo de Hitchcock no cinema, que delineia o ritmo dos filmes para arrancar a maior descarga possível de adrenalina, Miller fez o mesmo com seu par romântico em Daredevil, por meio de um timing perfeito! Sua idéia era dominar os sentimentos do leitor sem lhe dar chance de defesa. Com esse intuito, pacientemente armou seu quebra-cabeças e levou dois anos para chegar ao resultado que esperava.
O INSANO E O CALCULISTA
Um mês após nos oferecer Elektra, Miller reintroduziu o Mercenário.
Em apenas três páginas, apresentou o tema da edição e, à moda de Will Eisner, lançou-nos diretamente em meio à ação. Arquiteto de suas personagens, Miller anunciava mais um elemento do cenário de sua primeira fase como roteirista do Demolidor. Letal e insano, o Mercenário representava o antípoda perfeito do nosso herói. Se para Miller, o Demolidor sempre foi o protótipo de um herói católico com a moral ambígua de um cavaleiro andante, é fácil imaginar o profundo mal-estar que lhe provocava uma criatura caótica e destituída de compaixão como o Mercenário.
Na edição 171, estreou o Rei do Crime, o último vértice da quadratura letal que serviria de base para os próximos dois anos de aventuras. De posse de uma amplitude até então ignorada pelo público leitor, Wilson Fisk não era mais o montanhoso sparring de heróis como o Homem-Aranha e o Capitão América. Esquecidos os vexames do passado, o Rei era reapresentado ao leitor como um vilão frio e calculista. O corpulento gangster raramente recorria à força bruta - a qual tinha em abundância - e, da quietude de sua cobertura, disseminava a dor e ditava a morte em toda a cidade de Nova Iorque.
O MESTRE DOS AVENTUREIROS
Elektra só retornaria oito meses após seu surgimento. Desta vez, somos também apresentados ao Tentáculo, a centenária quadrilha ninja que tantas aventuras proporcionou nos anos seguintes. Quando Elektra deu a graça de sua presença e violência, ficou evidente o quanto Matt ainda era apaixonado por ela. Ali, estava o ingrediente que daria toda a intensidade da trama que se desfraldava.
Na edição 177, conhecemos Stick, o homem que havia treinado Matt pouco depois do acidente que o privou da visão. Costurando a trama, Miller, mais tarde, nos revelou que esta personagem também cega era o líder de uma organização ninja antagonista do Tentáculo. Soubemos ainda que, além do Demolidor, outra pessoa teria buscado os ensinamentos de Stick, a própria Elektra. Ao término da edição, nós nos deparamos com o Rei diante de filmes da assassina grega em ação. O cerco ao leitor vai se fechando.
O DESFECHO
Trinta dias depois, o episódio começou no apartamento de Elektra, onde ela foi repentinamente atacada por vários agressores e eliminou um a um, em apenas três páginas elektrizantes. Findo o confronto, revelava-se a verdade sobre o ataque: um teste e um convite para que se encontrasse com o Rei. Cenas enxutas e muita economia de texto. E o coração do leitor a mil, escapando pela boca.
Após meses de um crescendo intenso, as histórias do Homem sem Medo acercavam-se do seu clímax. Porém, aluno diligente do mestre Hitchcock, Miller sabia tudo de ritmo narrativo. Ele freou o vagão a um passo do final. Como um acorde mais lento antes da apoteose, a edição 180 nada mais foi do que um breve interlúdio, no qual o Demolidor resgatou Vanessa, a esposa desaparecida do Rei do Crime.
Em abril de 1982, Daredevil 181 veio brindar o leitor com o dobro de páginas habituais. Aqui, todos os plots se encerraram. Mal começamos a ler e, em poucas páginas, a espetacular fuga da prisão empreendida pelo Mercenário diante das câmaras de TV. Qualquer semelhança com as cenas finais de Woody Harrelson em Assassinos por natureza de Oliver Stone, cujo roteirista foi o fanático por HQ, Quentin Tarantino, não é mera coincidência.
Já liberto, o vilão deduziu quem realmente era o Demolidor e arquitetou um plano de vingança duplo: eliminar a nova assassina do Rei, o gangster que rejeitou seus serviços, e, de só um golpe, matar a antiga paixão do herói samaritano que tantas vezes o atrapalhou.
Cada frase, cada cena tinha um peso calculado e definido na edição. Nada se desperdiçava, inclusive a carta do baralho que, como navalha esgorjava gargantas - tempos depois, uma apropriação indébita do mutante Gambit.
O auge de uma sinfonia, a morte de Elektra, é uma comoção cruel para o leitor, que nem mesmo o derradeiro confronto entre o Demolidor e o Mercenário foi capaz de aplacar.
PRESENÇA APÓS A MORTA
Culpemos Miller pela terrível perda. Foi ele quem criou Elektra e a jogou às feras para que morresse de maneira violenta, emprestando dramaticidade a uma das mais impactantes cenas jamais vistas nas HQs de super-heróis. Em troca de sua vida, o estrelato do Demolidor.
Elektra morreu assassinada pelas mãos do Mercenário em Daredevil 181. O próprio Matt Murdock, tão descrente quanto nós, em Daredevil 182 exumou o corpo de sua amada, apenas para constatar a verdade aterradora demais para ser aceita.
No entanto, mesmo morta, a ninja grega continuou presente nas revistas do Demolidor. Em Daredevil 190, com o dobro de páginas, novos elementos de seu passado foram revelados. Miller brincava com os anseios do leitor, atiçando nossos desejos e nos fazendo sentir ainda mais a frustração da perda.
O fecho da edição poderia ser encarado de duas maneiras: ou poeticamente simbólico ou, então, de um modo mais simplista e tacanho. Por esta última e paupérrima interpretação, Elektra teria ressuscitado como tantos outros redivivos dos quadrinhos. Foi por esse caminho nada brilhante que seguiu D. G. Chichester, um dos mais lamentáveis roteiristas do Demolidor depois de Miller. Como conseqüência, temos hoje uma morta-viva sem o fulgor da original, que apenas fez manchar o bom nome de Pete Milligan, Mike Deodato, Brian Bendis e Greg Rucka.
UMA PIADA EXCEPCIONAL
Mas voltando a Miller... em parceria com o desenhista Bill Sienkiewicz, ele preparou Elektra assassina, uma alucinante mini-série em oito partes (compilada no Brasil pela editora Abril em quatro). Sua trama passava-se anos antes da morte da anti-heroína, precedendo até seu reencontro com Matt Murdock.
Misturando muita ação e humor negro, os dois papas das HQs exageraram nas poses e no armamento. Foi tudo uma grande brincadeira. Ilustradores e roteirista menores não entenderam a piada e levaram-na a sério. Daí, ao longo dos anos 80 e 90, a legião de heróis e heroínas que pateticamente desfilaram pelas páginas dos gibis, carregando rifles, bazucas e canhões centenas de vezes maiores do que eles próprios. Chichester foi um dos que não entenderam a gozação. Mas o que esperar de alguém que, além de Elektra, trouxe de volta o agente Garrett da Shield, que fazia par com a mercenária em Elektra assassina?
MORTA E PONTO FINAL
Embora a Marvel queira nos fazer acreditar no contrário, Elektra está morta. Seu fim deu consistência às histórias do Demolidor e revertê-lo só faz apequenar uma grande saga. O que temos hoje é uma morta-viva, um zumbi, uma triste sombra do que foi a personagem em que pesem os grandes nomes incumbidos de ressuscitá-la. O capítulo final de sua saga foi o romance gráfico Elektra vive, escrito e ilustrado por Miller. Em suas páginas, magistralmente colorizadas por Lynn Varley, não resta a menor dúvida quanto a seu destino.
Aos roteiristas e editores que insistem em trazer Elektra de volta mesmo que, para isso, tenham de ignorar o passado, só posso recomendar que leiam atentamente Elektra vive. Em sua derradeira página, a narração em primeira pessoa de Murdock serve de alerta perfeito para aqueles que ousam perturbar a paz de sua namorada:
- Não era ela que me atormentava. Era eu que não a deixava em paz.