Tenho uma filha de 12 anos que, de uns tempos para cá, parou de ler. Desde que aprendeu, ela lia quadrinhos e literatura sem muito estímulo. Gostava, pedia gibis, pedia livros. Até aceitava umas sugestões dos pais.
De uns tempos para cá, aquelas horas de leitura viraram horas (mais horas) de shorts no YouTube, TikTok e mais YouTube. E só. Sem demonizar nenhuma das plataformas – mas sempre com um pé atrás por saber o que os algoritmos querem – e considerando que um vocabulário audiovisual é tão importante quanto os das letrinhas, o que me incomoda mesmo é o estímulo único. Tudo bem assistir umas horas de YouTube; mas e aquela hora de concentração num livro, de relacionar imagem e texto na HQ, de ouvir música? O que me incomoda é ficar só na mesma marcha, a de passar de um vídeo pro outro.
Quero acreditar nos amigos que dizem que é só uma fase, que daqui a pouco minha filha volta a ler. Tem também a questão de que 12 anos é o início daquela fase em que você quer se definir em oposição aos pais, e os pais dela têm livros por toda a casa. Os pais dela trabalham com livros e quadrinhos. O pai dela tem até uma coluna sobre quadrinhos.
Se você está aqui lendo uma coluna sobre HQ, há enormes chances de que os quadrinhos tiveram um peso considerável naquela era de ouro que foram seus 12 anos. Desde antes, provavelmente. Você se alfabetizou com Turma da Mônica, com Disney, ou com Marvel e DC. Se estiver perto da minha idade, você pegava o jornal dos seus pais e lia as tiras. Tinha disputa pelos poucos gibis na biblioteca do colégio.
Quadrinhos foram um dos entretenimentos mais acessíveis de quem teve infância no século 20. Crianças do século 21 têm pouquíssimo contato com jornais e cada vez menos com aquele gibizinho grampeado. Ainda existem quadrinhos aos montes, espalhados por suporte físico e digital, para todas as idades. Tem mais do que no século passado, aliás. E melhores. Mas menos leitores.
Por mais educativos, políticos, artísticos, transformadores de mentes e revolucionadores de vidas que sejam, quadrinhos são, em primeiro lugar, distração. Entretenimento. As distrações para a infância – e as ideias de como deve ser a infância – mudaram muito desde o suplemento infantil do jornal lá na primeira metade do século 20. Desde lá, surgiram rádio, televisão, videocassete, videogames, internet, YouTube, redes sociais. Todos são primariamente distrações, todos são entretenimento – em muitos casos, mais baratos e acessíveis do que um gibi. O peso dos quadrinhos como distração acessível mudou muito.
Se hoje existe HQ para adultos, para colecionadores, para terceira idade e os tantos segmentos do mercado, é porque, nas gerações passadas, houve milhões de crianças que tinham gibi como uma de suas distrações principais, quando não a principal. É o peso daquela época que sustenta o mercado de hoje.
E você já conhece o resto do papo: sem renovação de leitores agora, com as crianças de hoje, o que vai ser dos quadrinhos daqui a poucos anos?
Tenho uma crença praticamente religiosa de que a pessoa que não lê é a pessoa que ainda não descobriu o que gosta de ler. Que quem não lê quadrinhos ou diz que não gosta de quadrinhos só não leu o quadrinho certo. Dizer que você não gosta de ler é como dizer que você não gosta de música, de cinema, de comida, de pessoas. São muitas opções para não ter nada nem ninguém que agrade.
Pensando na situação micro com minha filha de 12 anos e na situação macro da renovação do mercado de quadrinhos, fui atrás de dicas do que as crianças têm lido.
Conheço alguns gibis legais para pouca idade, mas é claro que não conheço todos. Toda semana alguém me pergunta um gibi legal para o leitor e a leitora de 7 anos, de 10 anos, de 12 anos. Talvez o problema seja apenas esse: qual gibi recomendar nesse cardápio, que é vasto.
Esbarrei em um especialista: Jonatas Varela, do Prateleira de Quadrinhos. A equipe do Prateleira faz várias atividades para promover leitura de HQ, como uma gibiteca itinerante que circula pela zona leste de São Paulo com mil gibis (todos nacionais) e faz leituras em grupo. Eles também montaram um espaço no CEU Parque do Carmo a partir de doações (saiba como doar aqui) com todo tipo de quadrinho. Na média, eles atendem leitores a partir dos 11 anos, ou do 6º ano do ensino fundamental. Jonatas participou recentemente de uma live do Fora do Plástico debatendo Projetos Sociais que envolvem HQ.
“Quando fiz clube de leitura com os alunos de escola, acabei vendo alguns padrões”, me contou o Jonatas. Ele e sua equipe me passaram quais são os quadrinhos que mais chamam atenção de acordo com a idade, conforme as experiências do Prateleira de Quadrinhos:
11 anos, 6º Ano do Ensino Fundamental
Turma da Mônica Jovem (MSP/Panini)
Chico Bento Moço (MSP/Panini)
Naruto, de Masashi Kishimoto (JBC)
Tools Challenge, de Max Andrade (Draco)
12 anos, 7º Ano do Ensino Fundamental
Scott Pilgrim, de Bryan Lee O’Malley (Quadrinhos na Cia.)
Pela Última Vez, de Alec (NewPOP)
My Hero Academia, de Kohei Horikoshi (JBC)
Bone, de Jeff Smith (Todavia)
13 anos, 8º Ano do Ensino Fundamental
Nimona, de ND Stevenson (Intrínseca)
Na Vida Real, de Cory Doctorow e Jen Wang (Marsupial)
Jeremias: Pele, de Rafael Calça e Jefferson Costa (MSP/Panini)
O Príncipe e a Costureira, de Jen Wang (Darkside)
14 anos, 9º Ano do Ensino Fundamental
Watchmen, de Alan Moore, Dave Gibbons e John Higgins (Panini)
Ms. Marvel: Nada Normal, de G. Willow Wilson, Adrian Alphona e Ian Herring (Panini)
Arlindo, de Ilustralu (Seguinte)
Valentine, de Vanyda (Sesi-SP)
Jonatas e equipe têm estratégia quando encontram um leitor jovem tentando escolher o que ler ou aquela pessoa que simplesmente não tem hábito de leitura.
“No caso de abordagem direta nas conversas em grupo, tem que ser um tema que está vivo naquele momento”, ele diz. “Por exemplo: agora está rolando o filme da Barbie e existem várias temáticas dentro dele, como machismo. Atraímos os leitores para a conversa com o tema e mostramos opções que eles vão se interessar em ler por conta da temática envolvida.”
Como fisgar um leitor que curtiu Barbie? Jonatas sugere o material de Helô d’Angelo (Nos Olhos de Quem Vê), os álbuns de Liv Strömquist (A Origem do Mundo, Na Sala dos Espelhos) e, “se é pra ser mais mainstream” – leia-se: super-heróis – A Vida da Capitã Marvel (de Margaret Stohl, Carlos Pacheco, Marguerite Sauvage, Rafael Fonteriz e Marcio Menyz), que aborda a infância e adolescência de Carol Danvers.
“Tem criança e jovem que não faz ideia do que ler. Fica perdido na biblioteca”, retoma Jonatas. “A gente costuma perguntar o que eles gostam de assistir e vamos nos referenciando inicialmente por isso, para fazer as indicações. O interesse deles iria vir pela conversa e o que chamou a atenção de cada título que citamos. Às vezes tem um ponto que chamou mais atenção e que mencionamos reforçando com outro quadrinho.”
A entrada na leitura a partir do que a criança ou adolescente consome em outras mídias também é um padrão que Bianca Bail, outra especialista em quem eu esbarrei, percebeu. Entusiasta de quadrinhos, Bianca é livreira, já trabalhou períodos na Livraria da Vila e Livraria Cultura de Curitiba, sempre no setor infantil, e atualmente trabalha na Itiban, a loja de quadrinhos da cidade.
“As crianças às vezes entram na livraria procurando livros (ou só de passagem com os pais) e acabam se interessando por gibis por causa de um personagem que eles conhecem de outro lugar”, diz Bianca. “Vi muito isso acontecendo com Avatar e Gravity Falls, por exemplo.”
Os quadrinhos de Avatar: a Lenda de Aang, de vários autores, saíram aqui tanto pela Nerd ao Cubo, quanto pela Intrínseca e Planeta. Os de Gravity Falls, pela Universo dos Livros. Ambos são baseados em desenhos animados da TV.
Mangás em geral, segundo Bianca, também costumam ser procurados a partir do que os leitores viram na TV. “Ou por causa de irmãos mais velhos que consomem”, ela diz, “e às vezes até umas crianças fascinadas com conceito de ler algo de trás pra frente!”
“E isso dificulta muito minha vida porque acho que tem pouquíssima coisa de mangá sendo publicado para os mais novos. Hoje em dia eu indico Chi's Sweet Home [de Kanata Konami, JBC], que não é originalmente infantil, mas acho apropriado e interessante para crianças mais novas.”
Ela segue no mangá: “Quando as crianças já estão entrando ali pelos 10-12 anos, tem bastante mangá que interessa: Demon Slayer [de Koyoharo Gotouge, Panini], Naruto, todos de esporte. Mas eu sempre deixo explícito para os pais a classificação indicativa da capa, que é quase sempre pelo menos 14+. A maioria deles acaba não se importando.”
Mas mangá, Bianca confirma, sai em velocidade absurda. “Algumas coisas que eu gostava de indicar também acabam ficando pouco tempo em catálogo. Mangá some muito rápido, infelizmente.”
Na pandemia, um acaso deixou Bianca diversificar as recomendações aos pais e crianças. O interesse geral, ela diz, era quase sempre pela perene Turma da Mônica. A livraria em que ela trabalhava, porém, passou um período sem receber revistas.
“Isso me deu abertura pra indicar outras coisas! Dependia do nível de leitura das crianças, mas para as bem novinhas eu indicava Homem-Cão ou os do Mo Willems”.
Homem-Cão,quadrinho que bate recordes nos EUA há alguns anos, vendendo milhões, é criação de Dav Pilkey e já teve 13 volumes lançados aqui pela Companhia das Letrinhas (incluindo seu derivado, O Clube do Pepezinho).
Normalmente não identificado como quadrinho, os livros de Mo Willems, da série O Elefante e a Porquinha, são livros ilustrados que às vezes têm algum elemento de HQ. Também saem aqui pela Companhia das Letrinhas, que já lançou 12 volumes. Firmando a relação com HQ, Willems acabou de ganhar um Eisner Award por um dos volumes da sua série com o personagem Pombo – The Pigeon Will Ride The Roller Coaster! –, inédita no Brasil.
“Se o leitor fosse um pouquinho mais avançado, eu indicava a série da Hilda, as coisas da Raina Telgemeier ou até Diário de um Banana (que praticamente se vendia sozinho)”, segue Bianca. “Hoje em dia, para essa mesma faixa etária eu tenho curtido muito indicar Ana & Froga.”
O fenômeno Diário de um Banana, de Jeff Kinney também fica no limite entre quadrinho e livro ilustrado – mas até já foi indicada a prêmio de HQ – e teve quase 20 volumes no Brasil pela VR Editora. A VR também publica Ana e Froga, da francesa Anouk Ricard, desde o ano passado e acabou de lançar o quinto volume.
Raina Telgemeier é outra que vende milhões nos EUA e no Brasil já passou pelas editoras Devir (Sorria, Irmãs, Drama) e Intrínseca (Coragem, Fantasmas). Já os quadrinhos de Hilda, de Luke Pearson, apesar da série na Netflix e de serem dos meus preferidos, teve passagem rápida por aqui com apenas dois volumes na Quadrinhos na Cia.
“Acho que vale dizer que às vezes eu tinha muita resistência dos pais com essas indicações”, continua Bianca Bail, “por duas razões principais. 1: Se os pais só consomem quadrinhos via Mônica ou Disney, é difícil eles aceitarem um gibi que fica na mesma faixa de preço de um livro e não um preço ‘de banca’. E 2: Alguns pais acham que os filhos têm que ‘graduar’ dos gibis e pegar coisas mais ‘sérias’ pra ler.”
Isto, claro, é um problema ao se falar com o público em geral. Não é o mesmo público seleto que eu encontrei quando perguntei, nas minhas redes, que quadrinhos meus seguidores têm visto nas mãos das crianças dos 6 aos 12 anos. Quem me segue, afinal, tende a ser leitor e leitora de quadrinho (e cabeça aberta) e está sempre tentando empurrar quadrinhos para filhos, sobrinhos, netos, alunos etc.
As respostas fecharam bastante com as recomendações de Jonatas Varela e Bianca Bail, mas também trouxeram novidades. Pedi que meus respondentes dessem a idade das crianças que estavam lendo o gibi citado.
Descobri, por exemplo, crianças de 6 e 7 anos que são vidradas em Liniers – não necessariamente sua famosa série de tiras, Macanudo (Zarabatana), mas seus quadrinhos excelentes para o público de menor idade: Os Sábados São Como um Grande Balão Vermelho, Boa Noite Planeta (que ganhou um Eisner), Flores Selvagens e Escrito e Desenhado por Enriqueta (todos pela VR Editora).
Ainda na faixa dos 7 anos começam a aparecer os primeiros mangás – o já citado Chi’s Sweet Home, Dragon Ball (de Akira Toriyama, Panini) – e os primeiros super-heróis. Pais provavelmente ligados em Marvel e DC recomendam aos filhos a linha DC Kids – Querida Liga da Justiça, Super Hero Girls, Liga de Superpets - e a série Marvel Dose Dupla (de Mariko Tamaki, Gurihiru e outros), todas pela Panini.
Também é a partir dos leitores de 7 anos que vi as primeiras menções a Homem-Cão e aos quadrinhos de Sonic (por vários autores, Geektopia) – que seguem até os leitores de 10 anos. E também a quadrinho nacional: Arlindo, de Ilustralu (Seguinte) e a série Como Fazer Amigos, de Eric Peleias e Gustavo Borges (independente).
Na faixa dos 8 aos 9 anos, algumas recomendações que eu não tinha pensado: a série metalinguística e divertidística Imbatível, de Pascal Jousselin (Nanabooks) e Este Era o Nosso Pacto, linda graphic novel de Ryan Andrews (Conrad). Também é nesta faixa que aparecem os já citados Diário de um Banana, Raina Telgemeier e Bone. Bone, aliás, é citado em todas as idades a partir dos 8.
Aos 10 e 11 anos, mangás começam a aparecer com mais força: Naruto, Demon Slayer, One Piece, Spy X Family, Jojo’s Bizarre Adventure (todos pela Panini), Card Captor Sakura (JBC). O fenômeno Heartstopper, produção da britânica Alice Osemann que segue muito as ênfases de mangá, começa a aparecer pelos 11 anos. É nessa faixa que os pais quadrinhófilos também começam a empurrar e conquistar leitores com material clássico americano, como Peanuts (várias editoras) e Calvin & Haroldo (Conrad).
Aos 12 anos, a idade da minha filha, apareceram leitores de Nimona, Umbrella Academy (Devir), Scott Pilgrim – material que a Netflix impulsiona, sem dúvida. E muitos mangás, além dos já citados: Haikyu!! (JBC), My Hero Academia (JBC), Vinland Saga (Panini). O brasileiro Leo Finocchi foi citado mais de uma vez como autor que conquista leitores na faixa dos 12 anos.
Turma da Mônica foi citada por metade dos respondentes, mas acredito que seria mais se muita gente não tivesse deixado de citar por considerar opção óbvia. O material de Mauricio de Sousa é como o ar que a gente respira na infância, está sempre ao redor. Se a Turma clássica aparece desde a idade de alfabetização – e às vezes é a alfabetização –, as Graphic MSP são citadas a partir dos 8 anos, Turma da Mônica Jovem e Chico Bento Moço a partir dos 10 e Turma da Mônica Geração 12 a partir dos 11 anos.
A variedade de quadrinhos para crianças aparentemente não deixa a desejar – e é explorada por muitas editoras no Brasil. Mas talvez falte algo a mais para esses índices de leitura deslancharem.
Nos Estados Unidos, por exemplo, apesar de editoras tradicionais como Marvel e DC fazerem investimentos bastante tímidos nesse público, há todo um mercado do quadrinho infantojuvenil que já superou o dito mainstream dos super-heróis.
Não é só os mangás, que são potência inegável. Também não é só lançar gibi bom e esperar que as crianças venham. O sucesso milionário dos quadrinhos de Dav Pilkey e Raina Telgemeier é em parte resultado do trabalho concentrado da Scholastic, editora que vai direto às escolas fazer feira de livros e botar quadrinhos nas bibliotecas. E ela não é a única editora por lá que literalmente vai onde as crianças estão.
O abastecimento das bibliotecas públicas com quadrinhos também tem um peso reconhecido nos índices de leitura (e de vendas) em países como EUA, Canadá, França e outros. No Brasil, o investimento do governo federal – principalmente, mas também de alguns governos estaduais e municipais – não deixa a desejar em termos de compra de livros para biblioteca, e abriu os olhos para os quadrinhos há mais de uma década. Tem bastante quadrinho em biblioteca pública no Brasil. O que falta, talvez, é um passo a mais.
“Não basta botar o recurso só em produção e compra de mais livro/quadrinho”, diz Jonatas Varela, do Prateleira de Quadrinhos. “É preciso colocar recurso para formar leitores. Isso pode se dar por meio de projetos sociais, professores que tenham recebido treinamentos para fazer a curadoria de títulos, formação para os articuladores de salas de leitura nas escolas. Espaços de leitura de fácil acesso.”
Jonatas também sente falta de mais papo sobre quadrinhos entre esse público, em comparação com as conversas sobre games, streaming e outras mídias concorrentes. “Essas outras mídias são de livre/fácil acesso, fazem parte das conversas do cotidiano e são utilizadas por pessoas que eles admiram. Esse somatório gera um desinteresse. Porque ‘meus amigos não falam de quadrinhos’, ‘é caro’, ‘as pessoas que eu gosto e admiro não falam disso’.”
Bianca Bail, a livreira, acha que falta “principalmente educação do público geral, de que quadrinhos não são uma mídia ‘menor’ que outras mídias”.
Ela continua: “Bem próximo disso, investimento público, com certeza. Ao longo da minha vida eu tive contato com quadrinhos e literatura por causa de programas de bibliotecas e escolas públicas de Curitiba. Mas também sei que essas coisas a que eu tive acesso estão bem longe da maioria das pessoas. Quantos outros lugares do Brasil têm uma gibiteca?”
“Preço e variedade estão a desejar também, na minha opinião. Mas se isso mudasse do dia para a noite, sem investimento e conscientização do público eu não acho que as crianças acordariam mais interessadas em gibi”, completa Bianca.
E a minha filha, a menina de 12 anos que não quer ler quadrinho nem mais nada e que passou a me chamar de boomer?
Confesso que estou mais nervoso com isso porque tenho lido muitos quadrinhos bons que acho que adolescentes espertas deviam ler de preparação para a vida adulta. Para a própria vida de adolescente, eu diria. Nos Olhos de Quem Vê, da Helô d’Angelo, todos da Liv Strömquist, Os Crocodilos de Thomas Mathieu. Está na hora de ela se preparar para esse mundo que não é legal com as mulheres. Ela não topou.
Há pouco tempo também fui atrás dos meus seguidores para pegar recomendações de leitura. Também recomendações de estratégias para convencer uma criança de 12 anos a voltar a ler.
Quanto às sugestões de quadrinhos, vieram muitas ótimas: Arlindo, as Graphic MSPs, Heartstopper, Turma da Mônica G12, A Garota do Mar, Bone, Demon Slayer. Ótimas mesmo. O problema é que ela já leu todos esses. E isso não adiantou para ela seguir lendo.
(Claro que sugeriram muitos que ela não leu. Agradeço pelas sugestões e vou tentar Fruits Basket, Lumberjanes, O Fantasma de Anya e outros.)
Quanto às estratégias, sugeriram várias: dar quadrinhos de presente (ora, dou quase todo dia), psicologia reversa (já tentei), dizer que tal gibi é proibido (já tentei, ela sacou o estratagema), deixar um gibi em cima da mesa e ver se ela pega (não pega), “mangá” (mangá é quadrinho, e ela já leu um monte de mangá), adaptações de filmes e séries que ela gosta (já rolou, não funciona mais).
Também sugeriram coisas que eu não sei se quero fazer, como pagar para ela ler (“R$ 5 por gibi lido!”), desligar o wifi da casa e uma coisa hacker de mexer no histórico do celular dela e fazer o algoritmo começar a recomendar quadrinho. Essa eu nem sei fazer.
Como eu disse antes, muitas pessoas me disseram que é uma fase e que eu espere passar. Tomara.
Mas… esses dias a bolha de TikTok, YouTube e amigas dela estava assistindo Nimona. E ela veio me perguntar do gibi de Nimona. E eu, o mais rápido que pude, cacei meu exemplar de Nimona numa caixa e entreguei na mão da minha filha.
Já faz duas semanas. Ela ainda não leu. Mas tenho uma esperança.
TELGEMEIER EM PAUSA
Uma das autoras mais recomendadas para o leitor e a leitora criança é Raina Telgemeier. Já escrevi sobre Telgemeier na coluna. Até pouco tempo, ela era a quadrinista mais vendida deste século nos EUA, com quase 20 milhões de exemplares dos seus cinco álbuns em circulação.
Telgemeier era publicada no Brasil pela Devir, que lançou três dos seus álbuns. Só se encontra um deles, Drama, nas livrarias. Os outros – como o maior sucesso da autora, Sorria – estão esgotados.
A Intrínseca assumiu os álbuns da autora por aqui. Publicou Coragem e Fantasmas. Torcia-se que continuasse publicando Telgemeier, quem sabe recuperasse os esgotados da Devir.
Mas, em maio, a Intrínseca anunciou que pôs o pé no freio nas HQs. Todos os jornalistas da área de HQ estavam perguntando à editora há meses, e a assessoria de imprensa confirmou que só vai voltar aos quadrinhos quando “houver um cenário saudável de produção”, citando principalmente o aumento do preço do papel como impeditivo.
O Fora do Plástico fez uma lista das séries que a Intrínseca publicava e que agora entram em pausa por tempo indefinido. Várias de Jeff Lemire, a excelente Árabe do Futuro, a premiada Biblioteca Gaiman.
Raina Telgemeier não aparece na lista, pois, afinal, a autora não publica séries. Mas seus quadrinhos provavelmente entram no pacote pé no freio da Intrínseca. O que é uma pena para várias leitoras e leitores que podiam encontrar Fantasmas, Coragem (atualmente esgotado) e quem sabe mais do seu material se a Intrínseca pudesse recuperar Sorria e outros.
(A Intrínseca também não fez novas tiragens de Nimona para acompanhar o filme. A versão física do quadrinho, lançada em 2016, estava esgotada quando o filme chegou na Netflix. Continua esgotada. É possível comprar versão digital, porém.)
Isso não é problema se outra editora assumir Telgemeier, Árabe do Futuro, Jeff Lemire e outros autores aqui no Brasil, certo?
Seria. Mas perguntei à assessoria de imprensa da Intrínseca se outras editoras podem assumir séries/autores que ela publicou. A resposta é: não.
“Os direitos seguem com a Intrínseca, nossa intenção não é abandonar estas séries”, diz a assessoria. “Infelizmente, a decisão afeta todas, mas, como dito anteriormente, retornaremos com elas assim que o cenário estiver mais saudável.”
EXPRESSA 2.0
Uma coleção de livros que esmiúça a carreira de cada um dos grandes nomes do quadrinho brasileiro em entrevistas e muitas, muitas imagens. Dezoito volumes, com intenção de mais, dedicados a gente como Laerte, Luiz Gê, Marcelo D’Salete, Mutarelli, J. Carlos. Tratamento de luxo, material para ser perene. Marco histórico no registro da história da HQ nacional.
Há grandes chances de você não ter visto nem ouvido falar da Coleção Expressa, exatamente o que eu descrevi acima, que começou em fins de 2019. Produzida pela Revistas de Cultura com a Azougue Editorial, a coleção começou exclusiva por assinatura. Depois apareceu em algumas lojas online e físicas, mas poucas. Parou de repente em 2021 e, no mesmo ano, ganhou um Troféu HQ Mix de melhor projeto editorial. Depois, silêncio.
O silêncio acabou na semana passada, com o anúncio da retomada da Expressa, agora co-editada por Azougue Editorial e Ugra Press. O primeiro volume da retomada, dedicado a Angeli, já está em pré-venda.
A retomada não será só de novos volumes, mas com a republicação de todos os dezoito da primeira leva. Que, a propósito, foram dedicadas individualmente a Laerte Coutinho, Reinaldo Figueiredo, Fabiane Langona, Luiz Gê, Jaguar, Luis Fernando Verissimo, Rafa Campos Rocha, Marcelo D’Salete, Puiupo, André Dahmer, Fábio Zimbres, Fortuna (1931-1994), Lovelove6, Lourenço Mutarelli, Diego Sanchez, Mariza Dias Costa (1952-2019), André Toral e J. Carlos (1884-1950).
As novas edições vão passar por revisão de texto e imagens, ponto em que a primeira leva deixou a desejar para alguns leitores. O editor Sergio Cohn, da Azougue, concorda com a crítica.
“Olhando agora, na parceria com a Ugra, não sei como consegui realizar 18 números fazendo todo o trabalho editorial sozinho, desde pesquisa, transcrição, edição de entrevistas, diagramação, tratamento de imagens. Minha colega Ana Paula Simonaci ajudava na parte administrativa e nas entrevistas, mas no fim o trabalho era praticamente one man band. Uma loucura deliciosa, mas uma loucura. Trabalhar com o Douglas [Utescher, da Ugra], ver o cuidado dele, poder dividir essas questões acaba mostrando a missão impossível que a gente tinha mergulhado.”
A retomada vem com outra novidade muito importante: as edições da Expressa serão lançadas também em inglês, espanhol e francês, divulgando os grandes nomes do quadrinho brasileiro no exterior. Quem vai ficar responsável pela circulação internacional são as editoras Backlands Press (EUA, Inglaterra, Austrália, Canadá, África do Sul), Les Mots Mobiles (França e Canadá francófono), Oca (Portugal) e Andantes (Espanha e América Latina).
“Penso que o Angeli e a Laerte estão, para os quadrinhos underground, assim como os Mutantes estão para o rock psicodélico: serão um susto [para os gringos] por mostrar uma produção realizada em um país periférico, mas que é tão boa ou melhor do que a produção norte-americana e inglesa, por exemplo”, diz Sergio Cohn.
A ideia é lançar quatro volumes inéditos por ano. Depois de Angeli, o próximo deve ser dedicado a Miguel Paiva. Entre um e outro dos novos, serão reeditados cada um dos 18 volumes da primeira leva. “Mas sem uma periodicidade fechada”, diz Cohn, “o que nos dará mais liberdade para fazer cada volume com a calma, o prazer e o cuidado necessários.”
Quem aproveitar a pré-venda da Expressa Angeli vai ganhar alguns brindes: um bottom com arte do autor paulistano (para os primeiros 100 pedidos) e um suplemento no formato A2 que vai reproduzir sua série Protesto de um lado e, do outro, trazer releituras de vários quadrinistas brazucas em homenagem a Angeli.
UMA CAPA
De João Pinheiro para a Mil Grau n. 0, antologia “da quebrada” de “quadrinhos com sangue nos zóio”. Editada pela MMArte, a nova revista traz HQs de Pinheiro, Sirlene Barbosa, Álvaro Maia, Diox, Gabriel Renner, Márcio Jr., Allan Matias, Marcelo D’Salete, André Toral, Wagner Willian, Trimano e Luiz Gê.
O lançamento vai ser na Perifacon, no próximo domingo. Até lá, tem pré-venda no site da MMarte com frete grátis.
OUTRA CAPA
Do lançamento que deve ser o mais esperado desta década no quadrinho dos EUA: Minha Coisa Favorita é Monstro 2 finalmente sairá pela Fantagraphics em abril de 2024. A continuação da obra multipremiada e comentada de Emil Ferris já tinha sido anunciada em 2019, mas nunca deu as caras. Chega literalmente com Karen Reyes dando o carão na capa.
A Quadrinhos na Cia. prometeu também para o ano que vem no Brasil. Eu provavelmente vou traduzir.
(o)
Sobre o autor
Érico Assis é jornalista da área de quadrinhos desde que o Omelete era mato. Também é autor dos livros Balões de Pensamento – textos para pensar quadrinhos e Balões de Pensamento 2 – ideias que vêm dos quadrinhos.
Sobre a coluna
Mensalmente, o que aconteceu de mais importante nos universos das HQs e as novidades que você não notou entre um quadrinho e outro. Também: sugestões de leitura, conversas com autores e autoras, as capas e páginas mais impactantes dos últimos dias e o que rolar de interessante no quadrinho nacional e internacional.
#112 – Quantos Big Macs custa o seu gibi
#111 – Moore & Gibbons, Ruppert & Mulot e as parcerias que acabam
#110 – Mangá é melhor que gibi é melhor que mangá
#109 – O quadrinho brasileiro que viaja para o exterior
#108 – O aardvark e o babaca
#107 – 35 páginas que eu li no ano passado
#106 – Ramon Vitral versus Jeff Bezos
#105 – A memória do quadrinho nacional como terapia
#104 – Meu primeiro e quinquagésimo Festival d’Angoulême
#103 – Qual foi a notícia dos quadrinhos em 2022?
#102 – A inteligência artificial vai substituir o desenhista humano?
#101 – Os essenciais de Angoulême
#100 – O (meu) cânone dos quadrinhos
#99 – A melhor CCXP de uns, a pior CCXP de outros
#98 – Os prêmios e os quadrinhos que vão valer em 2047
#97 – Art Spiegelman, notável
#96 – O mundo quer HQ brasileira
#95 – A semana do Brasil e do quadrinho brasileiro
#94 – Todo fim de ano um engarrafatarse
#93 – Um almoço, o jornalismo-esgoto e Kim Jung-Gi
#92 – A semana mais bagunçada da nossa história
#91 – Ricardo Leite em busca do tempo
#90 – Acting Class, a graphic novel queridinha do ano
#89 – Não gostei de Sandman, quero segunda temporada
#88 – O novo selo Poseidon e o Comicsgate
#87 – O mundo pós-FIQ: você tinha que estar lá
#86 – Quinze lançamentos no FIQ 2022
#85 – O Eisner 2022, histórico para o Brasil
#84 – Quem vem primeiro: o roteirista ou o desenhista?
#83 – Qual brasileiro vai ao Eisner?
#82 – Dois quadrinhos franceses sobre a música brasileira
#81 – Pronomes neutros e o que se aprende com os quadrinhos
#80 – Retomando aquele assunto
#79 – O quadrinista brasileiro mais vendido dos EUA
#78 – Narrativistas e grafistas
#77 – George Pérez, passionate
#76 – A menina-robô que não era robô nem menina
#75 – Moore vs. Morrison nos livros de verdade
#74 – Os autores-problema e suas adaptações problemáticas
#73 – Toda editora terá seu Zidrou
#72 – A JBC é uma ponte
#71 – Da Cidade Submersa para outras cidades
#70 – A Comix 2000 embaixo do monitor
#69 – Três mulheres, uma Angoulême e a década feminina
#68 – Quem foi Miguel Gallardo?
#67 – Gidalti Jr. sobre os ombros de gigantes
#66 – Mais um ano lendo gibi
#65 – A notícia do ano é
#64 – Quando você paga pelo que pode ler de graça?
#63 – Como se lê quadrinhos da Marvel?
#62 – Temporada dos prêmios
#61 – O futuro da sua coleção é uma gibiteca
#60 – Vai faltar papel pro gibi?
#59 - A editora que vai publicar Apesar de Tudo, apesar de tudo
#58 - Os quadrinhos da Brasa e para que serve um editor
#57 - Você vs. a Marvel
#56 - Notícias aos baldes
#55 – Marvel e DC cringeando
#54 – Nunca tivemos tanto quadrinho no Brasil? Tivemos mais.
#53 - Flavio Colin e os quadrinhos como sacerdócio
#52 - O direct market da Hyperion
#51 - Quadrinhos que falam oxe
#50 - Quadrinho não é cultura?
#49 - San Diego é hoje
#48 - Robson Rocha, um condado, risografia e Cão Raivoso
#47 - A revolução dos quadrinhos em 1990
#46 - Um clássico POC
#45 - Eisner não é Oscar
#44 - A fazendinha Guará
#43 - Kentaro Miura, o karôshi e a privacidade
#42 - A maratona de Alison Bechdel, Laerte esgotada, crocodilos
#41 - Os quadrinhos são fazendinhas
#40 - Webtoons, os quadrinhos mais lidos do mundo
#39 - Como escolher o que comprar
#38 - Popeye, brasileiros na França e Soldado Invernal
#37 - Desculpe, vou falar de NFTs
#36 - Que as lojas de quadrinhos não fiquem na saudade
#35 - Por que a Marvel sacudiu o mercado ontem
#34 - Um quadrinista brasileiro e um golpe internacional
#33 - WandaVision foi puro suco de John Byrne
#32 - Biografia de Stan Lee tem publicação garantida no Brasil
#31 - Sem filme, McFarlane aposta no Spawnverso
#30 - HQ dá solução sobrenatural para meninos de rua
#29 - O prêmio de HQ mais importante do mundo
#28 - Brasileiros em 2021 e preguiça na Marvel
#27 - Brasileiros pelo mundo e brasileiros pelo Brasil
#26 - Brasileiros em 2021 e a Marvel no Capitólio
#25 - Mais brasileiros em 2021
#24 - Os brasileiros em 2021
#23 - O melhor de 2020
#22 - Lombadeiros, lombadeiras e o lombadeirismo
#21 - Os quadrinistas e o bolo do filme e das séries
#20 - Seleções do Artists’ Valley
#19 - Mafalda e o feminismo
#18 - O Jabuti de HQ conta a história dos quadrinhos
#17 - A italiana que leva a HQ brasileira ao mundo
#16 - Graphic novel é só um rótulo marketeiro?
#15 - A volta da HQ argentina ao Brasil
#14 - Alan Moore brabo e as biografias de Stan Lee
#13 - Cuidado com o Omnibus
#12 - Crise criativa ou crise no bolo?
#11 - Mix de opiniões sobre o HQ Mix
#10 - Mais um fim para o comic book
#9 - Quadrinhos de quem não desiste nunca
#8 - Como os franceses leem gibi
#7 - Violência policial nas HQs
#6 - Kirby, McFarlane e as biografias que tem pra hoje
#5 - Wander e Moebius: o jeitinho do brasileiro e as sacanagens do francês
#4 - Cheiro de gibi velho e a falsa morte da DC Comics
#3 - Saquinho e álcool gel: como manter as HQs em dia nos tempos do corona
#2 - Café com gostinho brasileiro e a história dos gibis que dá gosto de ler
#1 - Eisner Awards | Mulheres levam maioria dos prêmios na edição 2020
#0 - Warren Ellis cancelado, X-Men descomplicado e a versão definitiva de Stan Lee
(c) Érico Assis