Frequento alguns grupos de discussão de quadrinhos e quase todos os dias leio as mesmas mensagens do leitor brasileiro: “Mais uma editora?” “Mais um lançamento?” “Minha conta bancária não aguenta” “Tem leitor pra tanto quadrinho?” “Essa bolha vai estourar!”
Minha percepção é quase a mesma. Parece que toda semana as editoras brasileiras anunciam um álbum imperdível, um clássico obrigatório, mais um lançamento que os críticos (eu, inclusive) dizem que vale os cento e tantos reais de investimento. E as editoras que pipocaram este ano – e a promessa de outras – assustam. É muito quadrinho.
Não que você tenha que comprar tudo – já tratamos deste assunto. Mesmo assim, é muito quadrinho. Quem compra tanto quadrinho?
Resolvi fazer contas. As contas que eu tinha como fazer, no caso. Não há acesso a muitos dados numéricos do mercado de quadrinhos no Brasil. Cada editora sabe o que está vendendo e quais são suas tiragens, mas só elas sabem. Nenhuma divulga seus números.
Existem listas do que é mais vendido nas livrarias brasileiras e às vezes estas listas incluem quadrinhos – como a do Publishnews, que registra Batman/Fortnite vol. 3 e 1 na segunda e terceira posição esta semana (sendo que o volume 3 frequenta a lista desde fim de julho). A lista de Ficção do mesmo site ainda registra três mangás da Panini e mais um volume de Batman/Fortnite.
Mas listas como essa representam só uma parcela do mercado editorial. Não contam, por exemplo, vendas em nenhuma comic shop, nem nas bancas (que restam), nem na todo-poderosa Amazon – que também costuma ter quadrinhos na sua lista de Livros Mais Vendidos, mas, claro, só registra o que a Amazon vende.
Vendas, então, não sabemos. Número de leitores também não. O que temos são indícios: se há tantos lançamentos, tantas editoras chegando no mercado, se a Panini esgota tiragens, se a Pipoca & Nanquim dobrou o número de publicações… Se a oferta está subindo, é porque existe demanda, certo? Se tem tantos interessados em publicar mais quadrinhos, estes interessados têm algum indício de que tem mais gente comprando quadrinhos. Né?
Assim se espera.
Os números a que se tem acesso são os de lançamentos e de editoras. Nisso, o Guia dos Quadrinhosnos ajuda. O site, que é alimentado livremente pelos usuários, não pode ser considerado uma fonte perfeita, mas dá um retrato muito próximo da realidade no que diz respeito ao que é lançado de quadrinho impresso no Brasil.
E as contas que se tira do Guia dos Quadrinhos vão contra a percepção de que estamos numa época de mais lançamentos e mais editoras do que antes. Pelos números do site, esses dois números caíram. Não só em 2021, mas também em 2020, em 2019, em 2018…
Começando pelo total de lançamentos: segundo o Guia, o número de quadrinhos novos no Brasil está em queda desde 2015. Houve um aumento constante do início da década passada até a metade – de mais de 1800 lançamentos em 2011 a mais de 2500 lançamentos em 2015. Depois, o número começou a cair, chegando a pouco mais de 2000 no ano passado e, este ano, uma queda mais acentuada, que nos deixa perto dos números de dez anos atrás, talvez abaixo: até julho tivemos 1207 lançamentos.
Sim, as contas consideram até julho de 2021 e faltam cinco meses de lançamentos para se fazer a comparação exata do ano atual com os outros. Mas mesmo que agosto e os quatro meses pela frente representem metade dos lançamentos do ano – as editoras costumam reforçar lançamentos no fim de ano –, o total estimado de 1810 não vai superar o total de 2020.
E a percepção de que o número de editoras aumentou? Também não se sustenta. Segundo o Guia dos Quadrinhos, 115 editoras publicaram pelo menos um quadrinho em 2020. Em 2021, até julho, havia apenas 87 editoras de quadrinhos em atividade no país. Há outras surgindo no mercado, como a Hyperion e a Tundra, que não entram na conta. Mas é improvável que se chegue perto do mesmo número do ano passado. Nem que se chegue àquele ano do máximo de lançamentos, 2015, quando havia 169 editoras ativas.
Em 2015, a Editora Abril ainda publicava um monte de quadrinhos – mais de 150, segundo o Guia dos Quadrinhos –, ainda havia um monte de eventos de quadrinhos. Também havia mais bancas, a crise econômica do país estava só começando e, evidentemente, não tínhamos uma pandemia. O mercado já foi maior? Em número de lançamentos e de editoras, foi.
Há outras percepções que circulam pelos fóruns de discussão, como de que estamos numa enchente de mangás. Mais uma vez, o melhor indicativo disso seriam as vendas (ou as tiragens), mas não temos esses números. Em número de lançamentos, os mangás também tiveram o pico em 2015 – mas depois não caíram tanto. Ficaram na faixa dos 450 lançamentos entre 2016 e 2018, cresceram a 480 em 2019 e depois caíram de novo. Talvez tenham uma recuperação até o fim deste ano.
Mas há um dado interessante em relação aos mangás: este ano, eles passaram de 20 para 25% do mercado em número de lançamentos. Durante toda a década passada, o quadrinho japonês era um quinto do que se lançava no Brasil. Este ano, de janeiro a julho, um em cada quatro quadrinhos lançado no Brasil é mangá.
E o quadrinho brasileiro que estava em franco crescimento na década passada, com edições bonitas, lançadas por editoras grandes, financiadas pelo Catarse, com mais de uma centena de novidades a cada CCXP, FIQ, Bienal etc.? A notícia é triste, mas esperada: voltamos no tempo.
O pico foi o mesmo do resto: em 2015, o Guia dos Quadrinhos registra 229 lançamentos independentes e 55 graphic novels nas grandes editoras. Em 2016, foram 76 quadrinhos nacionais no formato livro, 177 independentes. Os números dos independentes se sustentaram até 2019, mas em seguida acompanharam os das editoras: queda.
Em 2021, até julho, foram só 25 graphic novels nacionais, por editoras, e 36 lançamentos independentes. Mesmo que estes números dobrem até o fim do ano, eles não chegam ao período áureo de 2015-2016. No caso dos independentes, não chegariam nem na metade do que se tinha naquela época. Aqui, não há dúvida de que o impacto veio da falta de eventos de HQ. Nem uma mísera sessão de autógrafos, em tempos de pandemia.
(Os números do quadrinho nacional que selecionei descontam o Império Turma da Mônica, que é um setor à parte. De qualquer modo, os quadrinhos de Mauricio de Sousa também estão em retração: chegaram aos 270 lançamentos em 2013 e 2014, depois variaram até baterem 216 no ano passado. Até julho deste ano, Mônica e companhia somavam 94 lançamentos, mais de vinte a menos do que no mesmo período em 2020.)
Como falei no começo, há vários outros números que devíamos levar em consideração. Além de vendas, tiragens e número de leitores, podíamos considerar o preço dos quadrinhos. A percepção é de que eles estão mais caros – talvez mais do que a inflação brasileira, que já é de assustar. Nisso, o Guia dos Quadrinhos não ajuda na pesquisa.
E mais: editoras não vivem apenas de lançamentos, mas de todo seu catálogo montado ao longo dos anos, que continua vendendo nas livrarias e eventualmente ganha novas tiragens. O Guia dos Quadrinhos também não dá essa dimensão.
No mais, o Guia só registra quadrinhos impressos. Embora o mercado de quadrinho digital ainda não tenha decolado no Brasil, sabe-se que há vendas e há leitores nesse setor. Quantas e quantos? Mistério.
Todos os dados acima são quantitativos. Qualitativamente, 2021 já é um ano pujante para o mercado nacional de HQ na diversidade. Clássicos modernos como Stuck Rubber Baby, Polinae Sunny chegaram aqui. Depois de dez anos, os quadrinhos premiados e festejados de Ed Brubaker e Sean Phillips acharam uma editora. Marc-Antoine Mathieu, Alfred e Ersin Karabulut tiveram ou terão seus primeiros quadrinhos traduzidos aqui, assim como Paco Roca, Miguelanxo Prado e Junji Ito voltaram com força. Oleg, Pele de Homem, Estranhas Aventuras, Chainsaw Man chegaram pouco depois das edições originais. Há linhas bem cuidadas de clássicos na Panini/Marvel e na Panini/DC para quem curte os super-heróis, de Omnibus a edições deluxe a coleções históricas como A Saga do Superman de John Byrne. Asterix voltou, Usagi Yojimbo vai voltar, Krazy Kat vai voltar, o quadrinho argentino continua voltando. Ainda tem Vida à Deriva, Incal completo, Rusty Brown. E, embora o quadrinho nacional já tenha visto quantidade maior, tivemos Arlindo e Escuta, Formosa Márcia.
Não temos dados para dizer o quanto se vende e o quanto se compra de quadrinhos no Brasil. O que dá para confirmar é que quadrinho bom não falta.
ZIP!
Um dos grandes críticos brasileiros de quadrinhos reuniu suas críticas em livro, que está sendo lançado agora. Amanhã, para ser mais exato.
Zip! Quadrinhos e Cultura Pop é uma coleção de 70 textos que Ciro Inácio Marcondes publicou no site Metrópoles entre 2017 e 2019. Ciro, professor de quadrinhos e de cinema, é um dos cabeças do site Raio Laser, que eu leio há dez anos – e, mais recentemente, ouço no Lasercast.
Perguntei pro Ciro qual é o melhor quadrinho que saiu no Brasil em 2021:
“Uma pergunta sempre difícil, mas vou matar essa logo com Podrão Aniquilação do Pablo Carranza, lançado pela Escória Comix. Imagine um quadrinho de 288 páginas na forma de uma fita VHS que funciona como um filme de Sessão da Tarde, mas depois que os realizadores tiverem tomado um chá com a própria fita! Tudo isso ambientado num parque de diversões horripilantemente parecido com o de tantas cidades (grandes e pequenas) por aí, onde uma pracinha de alimentação – disputada por um hambúrguer estilo ‘gordurama’, uma pastelaria repulsiva pinga-óleo e um ‘fudi trâqui’ inovador – se torna verdadeiro palco de batalhas sangrentas. Carranza tá na função deste tipo de quadrinhos arrepiantes há mais de uma década, e acho que aqui ele conseguiu concluir a sua obra definitiva.”
Zip! tem lançamento com sessão de autógrafos em Brasília amanhã, sábado, dia 4. Será na loja de discos Marcondes & Co. (116 Sul bloco A loja 29) das 14h às 19h. O livro está à venda aqui.
O MERCADO QUE É TRÊS MERCADOS
Frase interessante pescada na newsletter do Brian Michael Bendis: “O mercado de quadrinhos mudou de forma drástica nos últimos cinco anos. Acho que dá para chamar de três mercados.”
Na verdade, é um trecho em parênteses dentro da resposta de Bendis ao leitor que pergunta a quantas anda o projeto que o escritor tinha com o desenhista português André Lima Araújo. Bendis diz que ele e Araújo venderam o projeto a uma “grande editora” do “mercado tradicional de livros”, e que acabaram ganhando um contrato para várias graphic novels. Ainda não se tem nomes, nem do projeto nem da editora, mas o anúncio deve sair em breve.
Quais são os três mercados de quadrinhos dos EUA? O primeiro, claro, é o direct market, onde Marvel e DC e super-heróis reinam. E Brian Bendis já foi muito amigo dos reis. Sua resposta vai justamente no sentido de que ele está se adaptando aos novos tempos e que, embora nunca vá deixar esse mundinho, também precisa ser um autor de HQ antenado em outros mercados da HQ.
O segundo mercado é este em que Bendis está entrando. (Na verdade, já entrou: Escrevendo para Quadrinhos, seu manual, saiu por uma editora tradicional de livros nos EUA.) Que anda maior que o direct market nas vendas milionárias de Dav Pilkey (Homem-Cão), Raina Telgemeier (Coragem, Sorria) e outros. Marvel e DC também tentam entrar nesse mercado, mirando o público YA.
O terceiro mercado? Bendis não especificou, mas eu chutaria que é o digital. Há movimentação bastante séria acontecendo por aí, com investimentos milionários em plataformas como Webtoon, Tapas, Kuaikan. Pode botar o Substack sugando autores do direct market na mesma conta. E a DC fechou uma parceria com a Webtoon…
Leitores tradicionais ainda torcem o nariz para pagar por gibi digital. Mas tem uma nova geração que já lê no digital, aos poucos se acostuma a pagar (valores baixos, mas em grande quantidade), e isso pode definir o que vai ser o maior mercado de quadrinhos dessa década.
Bendis diz que segue na DC, apesar de sua passagem por lá não estar com todo o gás de quando foi anunciada. Ele anunciou que seu material autoral – como Powers, Pearl, Scarlet e a nova Joy Operations, entre outros – está de muda para a Dark Horse. E que não volta para a Marvel, apesar de ter convites. Recomendo a newsletter dele a quem curtir os trabalhos do autor. É gratuita.
VIRANDO PÁGINAS
Heróis Renascem, a iniciativa da Marvel Comics de entregar quatro das suas séries principais aos estúdios de Jim Lee e Rob Liefeld na Image Comics, começou no dia 4 de setembro de 1996 com o lançamento de Fantastic Four n. 1 – há 25 anos. A iniciativa durou um ano.
Ao mesmo tempo, em setembro de 1996 chegavam no Brasil os quatro lançamentos da Editora Globo com material da Image: Gen 13, WildC.A.T.s, Codinome Strykeforcee Cyberforce. As revistas duraram um ano.
Aquaman e Arqueiro Verde debutaram na mesma revista, More Fun Comics n. 73, que saiu em 9 de setembro de 1941 – há 80 anos. A DC lançou edições especiais para comemorar os aniversários de cada personagem.
Alias n. 1 chegou às lojas dos EUA em 5 de setembro de 2001, há vinte anos (depois de uma pequena polêmica na época). Foi a estreia da detetive Jessica Jones, criada por Brian Bendis e Michael Gaydos. Foi na mesma época que aportou no Brasil Marvel Século 21n. 1, a estreia do Universo Ultimate por aqui, com o novo Homem-Aranha de Bendis e Mark Bagley.
UMA CAPA
Do italiano Gipi, em Umahistória. Sai no fim do mês pela Veneta com tradução de Michele Vartuli. Está em pré-venda aqui. Em um ano de tantos lançamentos bonitos, ainda tem espaço para mais uma capa bonita. Estou ansioso para ler.
UMA PÁGINA
Duas, da história de Jessica Groke em 11:11. O jeito como Groke dispensa a quadriculação e força os closes para mostrar a tensão de um grafiteiro se arriscando no alto de um prédio: um dos quadrinhos nacionais a guardar deste ano.
11:11 tem a história de Groke mais outras de Felipe Portugal, Lalo e Diego Sanchez. Todas em torno do horário palindrômico. Foi financiada no Catarse e você encontra à venda aqui.
(o)
Sobre o autor
Érico Assis é jornalista da área de quadrinhos desde que o Omelete era mato. Também é autor do livro Balões de Pensamento.
Sobre a coluna
Toda sexta-feira (ou quase toda), virando a página da semana nos quadrinhos. O que aconteceu de mais importante nos universos das HQs nos últimos dias, as novidades que você não notou entre um quadrinho e outro. Também: sugestões de leitura, conversas com autores e autoras, as capas e páginas mais impactantes dos últimos dias e o que rolar de interessante no quadrinho nacional e internacional.
#53 - Flavio Colin e os quadrinhos como sacerdócio
#52 - O direct market da Hyperion
#51 - Quadrinhos que falam oxe
#50 - Quadrinho não é cultura?
#49 - San Diego é hoje
#48 - Robson Rocha, um condado, risografia e Cão Raivoso
#47 - A revolução dos quadrinhos em 1990
#46 - Um clássico POC
#45 - Eisner não é Oscar
#44 - A fazendinha Guará
#43 - Kentaro Miura, o karôshi e a privacidade
#42 - A maratona de Alison Bechdel, Laerte esgotada, crocodilos
#41 - Os quadrinhos são fazendinhas
#40 - Webtoons, os quadrinhos mais lidos do mundo
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#29 - O prêmio de HQ mais importante do mundo
#28 - Brasileiros em 2021 e preguiça na Marvel
#27 - Brasileiros pelo mundo e brasileiros pelo Brasil
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#22 - Lombadeiros, lombadeiras e o lombadeirismo
#21 - Os quadrinistas e o bolo do filme e das séries
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#17 - A italiana que leva a HQ brasileira ao mundo
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#14 - Alan Moore brabo e as biografias de Stan Lee
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#12 - Crise criativa ou crise no bolo?
#11 - Mix de opiniões sobre o HQ Mix
#10 - Mais um fim para o comic book
#9 - Quadrinhos de quem não desiste nunca
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#5 - Wander e Moebius: o jeitinho do brasileiro e as sacanagens do francês
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#1 - Eisner Awards | Mulheres levam maioria dos prêmios na edição 2020
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