“Eu era apaixonado pela história do Coronel Fawcett. Gostava das lendas que foram criadas para explicar o sumiço dele. Então, escrevi um roteiro sobre esses eventos, entrei em contato com Flavio Colin e perguntei se ele não desenharia essa HQ. Ofereci um valor muito baixo, e eu sabia disso, mas era o que tinha. Ele foi bastante gentil – como sempre fora comigo – mas não aceitou porque a quantia era realmente irrisória. Pediu-me desculpas por não aceitar e nos despedimos. Mas o fato é que um mês depois ele me contatou de novo e disse que faria a história. Isso foi maravilhoso, mas ao mesmo tempo, melancólico, porque um artista como ele estava sem trabalho.”
Este depoimento é do quadrinista André Diniz, que editou um dos últimos trabalhos de Flavio Colin, o álbum Fawcett, publicado em 2000 pela sua editora Nona Arte, que acabara de ser fundada. A importância de Colin para os quadrinhos era tanta que a publicação foi premiada com o Troféu HQ Mix e o Prêmio Angelo Agostini no ano seguinte. Mesmo assim, o artista sofria com a escassez de trabalhos e, muito triste, faleceria dois anos depois, no dia 13 de agosto.
Flávio Barbosa Mavignier Colin era carioca e nasceu há 90 anos, no dia 20 de junho de 1930. Multitalentoso, ele foi ilustrador, publicitário, escultor e quadrinista – essa sim sua grande paixão –, e deixou um legado para os quadrinhos brasileiros e para muitos desenhistas que admiram sua técnica.
Um de seus entusiastas é outro grande mestre da HQ mundial, Jô Oliveira, autor de A Guerra do Reino Divino, história com inspiração na arte de cordel publicada em 1975 na Europa. “Sou fã de Colin!”, disse. “Acho o trabalho desse grande quadrinista muito autêntico e com cara de Brasil”. O premiado designer e quadrinista Ricardo Leite vai na mesma linha. “Flavio Colin é um dos poucos artistas dos quadrinhos que consegue tanta expressividade com tão poucas linhas”. E acrescenta: “em cada cena desenhada uma aula de grafismo, um gênio da síntese gráfica!”
De fato, Colin tem um estilo próprio inconfundível e não são muitos os desenhistas de quadrinhos que podem dizer que criaram um estilo tão pessoal que poucos conseguiriam reproduzir.
Seus primeiros trabalhos têm inspiração no mestre do claro-escuro, o americano Milton Caniff, criador dos clássicos Terry e os Piratas e Steve Canyon. Mas Colin já buscava o seu estilo desde os primeiros trabalhos que fez em 1957 para a Garimar, uma pequena editora carioca que publicava a revista Coleção de Aventuras – Força Expedicionária Brasileira, com histórias de guerra narradas pelos ex-combatentes da FEB.
Nesse período, Colin passou também a integrar a trupe de desenhistas da Rio Gráfica e Editora (RGE), atual Editora Globo, que produzia quadrinhos de personagens de muito sucesso no Brasil, mas que em seus países de origem já não eram publicados. Era o caso de Cavaleiro Negro, Don Chicote e Águia Negra, entre outros. Nessa época, também fez ilustrações para a revista policial X-9, para O Globo e para a prestigiada revista O Cruzeiro, de Assis Chateaubriand.
Em 1958 pede demissão da RGE para investir em sua carreira de free-lancer, que estava de vento em popa. Foi uma boa aposta. Logo o radioator Álvaro de Aguiar o convidou para ser o desenhista de uma nova revista que seria lançada pela RGE: Aventuras do Anjo, uma adaptação da radionovela de grande sucesso da Rádio Nacional, que se tornaria também um êxito nos quadrinhos, publicada durante 74 edições – de 1959 a 1965 –, das quais 43 foram desenhadas por Colin. Esse trabalho mostrou ao mercado o seu talento para compor uma história de forma cinematográfica e o tornou muito popular.
Nessa época, Colin soube do início das atividades da Editora Outubro, em São Paulo, comandada por Miguel Penteado e Jayme Cortez, que era responsável pela direção de arte. Foi nessa casa editorial que se deu seu primeiro contato com as histórias de terror, que abriram seu horizonte para uma nova experiência criativa.
“O ambiente dessa editora era ótimo, quase uma confraternização permanente entre todos os colaboradores, com total liberdade de criação”, revelou Colin numa entrevista publicada no excelente O Grande Livro do Terror!, lançado em 1978 pela Editora Argos. “Aliado ao grande sucesso que as histórias de terror vinham fazendo naquela época, deu oportunidade para que a gente usasse a criatividade ao máximo”, complementou. Foi uma época de crescimento profissional e de muito trabalho.
Para a mesma editora, Colin chegou a desenhar também O Vigilante Rodoviário, adaptação de um seriado nacional de grande sucesso na TV. Não era sem razão sua predileção por temas brasileiros. Flavio Colin tinha uma forte visão nacionalista da arte de fazer quadrinhos e sempre nadou contra a corrente daqueles que só admiram o que vem de fora, principalmente os super-heróis.
Ele achava que os quadrinhos importados sufocavam a produção e os artistas brasileiros. Por isso, em 1962, Colin e um pequeno grupo de irredutíveis desenhistas, entre os quais Júlio Shimamoto, Getúlio Delphim, Canini e José Geraldo, participam da criação, no Rio Grande do Sul, da Cooperativa Editora de Trabalho de Porto Alegre (Cetpa) que tinha o objetivo de produzir quadrinhos com temáticas genuinamente nacionais. Era o sonho dele se concretizando.
“A gente ficou importando tiras americanas, deixando de produzir este material por aqui. Há tantos episódios interessantes na História do Brasil, sem falar no ciclo dos Bandeirantes, que dava para se fazer muita coisa comercial de boa qualidade”, analisou Colin na mesma entrevista. Ele se entregou de corpo e alma a um projeto que acreditava piamente. Para a editora, o quadrinista criou histórias baseadas no guerreiro indígena brasileiro Sepé Tiaraju, considerado um herói rio-grandense.
Mas o que era um sonho acabou se tornando um pesadelo. A Cetpa já enfrentava alguns problemas, como o de distribuição, mas seu fim foi decretado com o golpe militar de 1964, já que a cooperativa era apoiada pelo governador Leonel Brizola, perseguido pelo novo regime. Assim, todos os profissionais ligados ao projeto foram taxados como comunistas e praticamente alijados do mercado editorial.
Neste ano ele se afasta definitivamente das histórias em quadrinhos e passa a utilizar seu grande talento no mercado publicitário. Durante 14 anos Colin se torna um profissional respeitado nas agências McCann Erickson e Denison.
Se afastou definitivamente? Não foi bem assim. Colin já estava iniciando seus trabalhos com publicidade quando surgiu a idéia de fazer uma tira diária para jornal com um personagem chamado Vizunga. É o próprio Colin que conta naquela entrevista: “o Mauricio de Sousa me procurou munido de grandes planos para um novo personagem. (...) Relutei muito em aceitar, mas no fundo estava com vontade de fazer alguma coisa em HQ”, confessou. E acaba topando, mesmo sabendo que o valor que iria receber era muito baixo.
Porém, produzir tiras diárias era bastante trabalhoso e, em 1965, ele e Mauricio decidiram finalizar a carreira do personagem. Mesmo assim, Vizunga marcou inegavelmente a história dos quadrinhos no Brasil, tanto que em 1978, o editor da Vecchi, Ota Assunção, reuniu alguns capítulos do personagem na conceituada revista Eureka.
Um ano antes, em 1977, depois de um longo período afastado dos quadrinhos, o amigo Júlio Shimamoto – outro grande mestre dos quadrinhos, recentemente homenageado na CCXP19 –, o fez retornar ao batente, animado pelas boas perspectivas da chegada da editora paranaense Grafipar ao mercado de quadrinhos e da ampliação de títulos com HQs nacionais que a Vecchi passou a lançar.
Os quadrinhos nacionais voltaram a vender bem nesse período e Flavio Colin trabalhava incessantemente nos mais diversos gêneros, desde histórias eróticas – uma especialidade da Grafipar –, às de terror; de personagens gaúchos a cangaceiros.
Sua passagem pela publicidade terminou ajudando a refinar o seu estilo. O domínio de sua técnica dá a seu traço um vigor tão expressivo que o leitor simplesmente se entrega ao deleite visual criado pelo artista. Seu estilo é capaz de ir de uma cena delicada ao mais profundo horror; do humor caricato a uma situação dramática e angustiante, de um quadrinho para outro.
A partir dos primeiros anos da década de 80, a Vecchi e a Grafipar entram em declínio e fecham as portas. O mercado se retrai novamente e Colin começa a passar mais um período de dificuldades, voltando a fazer trabalhos esporádicos para publicidade. Começa também a colaborar com a Editora D-Arte, do amigo Rodolfo Zalla, que publicava com grande esforço as revistas Calafrio e Mestres do Terror.
Entre os álbuns que lançou a partir de então, destaca-se A Guerra dos Farrapos, uma revista em formatinho com 80 páginas, patrocinada pela Empresa de Petróleo Ipiranga cuja história seria relançada num álbum refinado em formato magazine pela editora gaúcha L&PM. Vivendo com dificuldades financeiras, ele ainda produz obras-primas como o premiado A Mulher-Diabo no Rastro de Lampião, de 1994, O Continente do Rio Grande, da obra de Barbosa Lessa, de 1995, além de O Boi das Aspas de Ouro, e Estórias Gerais.
O depoimento de André Diniz, que abre este texto, mostra a crua e dolorosa realidade da maioria dos artistas no Brasil, que lutam para sobreviver num cenário árido para a criação. É ainda mais impactante para aqueles que decidem alimentar o sonho de viver de quadrinhos num país que trai constantemente sua cultura, não valoriza sua arte, e tem precariedade histórica na educação.
É incompreensível que um artista completo como Flavio Colin, um mestre que colocou sua arte a serviço das nossas ricas manifestações culturais e da nossa História, tenha passado por tantas dificuldades financeiras. Shimamoto, que também trabalhou em publicidade, dá a definição precisa para o talento de seu amigo: “seus desenhos tinham algo de definitivo, de inimitável. Colin fazia uma arte impressionante, marcada pela capacidade de diversificar sem nunca se repetir”.
Em 2020 comemoramos os 90 anos de um verdadeiro artista brasileiro, que nunca desistiu de seus sonhos e sempre retratou o Brasil, lindo e trigueiro. Ele merece muito mais. Viva Colin!