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Grafipar - A editora que saiu do eixo

Grafipar - A editora que saiu do eixo

19.06.2001, às 00H00.
Atualizada em 21.09.2014, ÀS 13H12
Confesso que a primeira vez que comprei uma revista da Grafipar, não o fiz pelas razões mais nobres. Na verdade, eu estava profundamente interessado nas curvas da garota da capa - uma guerreira montada em um sáuro, num belo desenho de Rodval Matias. No entanto, quando abri e li a história, foi como uma revolução. Pela primeira vez em minha vida, eu via uma história em quadrinho nacional com a qualidade das revistas de super-heróis que lia na época. Os desenhos de Mozart Couto e Rodval Matias eram fascinantes.

Talvez, por isso, eu tenha uma relação tão forte com a Grafipar. De certa forma, essa editora de Curitiba foi a responsável por minha entrada no mundo da HQB.

No entanto, o que a Grafipar tinha de interessante além das suculentas mulheres da capa&qt;&

Para começo de conversa, foi a primeira grande editora de quadrinhos a sair do eixo Rio-São Paulo.

Além disso, há outro fator que já virou lenda: a vila dos quadrinhistas. Entusiasmados com o sucesso da editora, vários desenhistas mudaram-se para Curitiba, entre eles o Bonini, o Franco de Rosa (que depois viraria editor da Press, Nova Sampa e Mythos), o Gustavo Machado, o Watson, o Flávio Colin, bem como Cláudio Seto, que era o responsável pelo setor de quadrinhos.

Eles foram chegando e alugando casas próximas umas das outras e os fãs começaram a espalhar que, em Curitiba, havia uma vila só de quadrinhistas.

Já pensou&qt;& Já pensou poder visitar, em um único dia, todos os grandes quadrinistas brasileiros&qt;& Era o que se poderia fazer em Curitiba no início dos anos 80.

E a Grafipar pagava bem. Os artistas ganhavam mais ou menos quatro vezes o salário de um jornalista. Isso também chamou atenção dos escritores. O time de roteiristas da casa tinha nomes como Carlos Chagas, Nelson Padrella, Ataíde Brás, Júlio Emílio Brás e ( rufem os tambores) o poeta Paulo Leminski.

OS ROTEIRISTAS

A relação entre desenhistas e roteristas nem sempre foi cordial.

"Muitas vezes os desenhistas não queriam fazer certa história e jogavam o roteiro fora", conta Cláudio Seto. "O que mais tinha roteiros publicados era o Carlos Chagas. Ele já havia trabalhado para a Edrel e conhecia todos os macetes de roteiros. Além disso, era amigo de todo mundo. Ia pro bar beber cerveja com o pessoal".

A relação dos roteiristas com seus textos também era bastante diversa. Enquanto Júlio Emílio Brás – que morava no Rio de Janeiro – mandava o roteiro e chegava até a ligar para saber quem ia desenhar, Carlos Chagas produzia dezenas de histórias e muitas vezes nem se lembrava que as tinha escrito.

Uma grande surpresa para a maioria do público é saber que Paulo Leminski escreveu quadrinhos. Na época a sua esposa, Alice Ruiz, editava uma revista astrológica, Horóscopo de Rose para a Grafipar e Leminski acabou fazendo alguns trabalhos para a editora.

Ele adorava o trabalho de Shimamoto e talvez tenha escrito algo para ele. De certo mesmo, o poeta só escreveu quatro histórias. Duas para Cláudio Seto e duas para Rodval Matias.

OS DESENHISTAS

Vários desenhistas começaram suas carreiras na Grafipar.

Dentre os talentos revelados pela editora, destacam Rodval Matias, Mozart Couto e Watson. Os dois primeiros tinham nítida influência de Frank Frazzetta, desenhista americano famoso por suas histórias de ficção fantástica.

Mozart Couto vinha de uma família conservadora do interior de Minas Gerais. Por isso, não desenhava erotismo, que era a principal fonte de renda da editora.

Os outros desenhistas reclamavam, já que ele era único que fazia exclusivamente história de terror e fantasia. "Ele não desenhava erotismo mesmo. Isso no começo, porque depois, quando começou a fazer, escrachou de vez", lembra Seto.

Era comum receberem visitas de fãs querendo conhecer Watson, o mais festejado desenhista da Grafipar: "Eles vinha pensando que o Watson, com esse nome e fazendo aquelas histórias no estilo europeu, devia ser alto, loiro, algo como um gentlemen inglês", diz Seto. "Chegavam aqui e era a maior decepção. O Watson, nordestino, era baixinho, mirrado e vivia com frio".

O frio era tão grande que ele mal saia de casa. Passava o dia inteiro deitado na cama, embrulhado no cobertor, vestindo uma toca de lã e desenhando numa mesinha de sala.

EDREL

Para Cláudio Seto, a Grafipar era uma continuação da Edrel.

Foi nessa editora, no final da década de 60 e início dos anos 70, que surgiram grandes nomes do quadrinho nacional, como o próprio Seto e Fernando Ikoma. "Mas o erotismo da Edrel era mais forte, e isso num período muito mais repressivo da ditadura militar".

O trabalho de Seto na Edrel (que lhe rendeu o convite para organizar a área de quadrinhos da Grafipar) não se limitava só a desenhar. Ele fazia quase tudo, inclusive produzia fotonovelas eróticas, realizadas na cidadezinha de Guaiçara.

"Certa vez as senhoras católicas resolveram denunciar a minha personagem, a Maria Erótica, e a polícia baixou na editora em São Paulo", lembra o desenhista. "Como eu morava no interior, não me encontraram e acabaram levando presos os originais e os prenderam numa cela".

Nem todas as lembranças são tão cômicas. Na época houve uma verdadeira histeria anti-quadrinhos. Os caminhões das prefeituras passavam recolhendo gibis de casa em casa, que depois eram queimados em praça pública. Havia até um cartaz que mostrava um garoto vestido de cowboy. O texto dizia "Hoje mocinho, amanhã bandido", numa referência ao gênero faroeste, um dos prediletos dos leitores de quadrinhos.

CASOS

Durante os cinco anos de sua existência – 1978 a 1983 – a Grafipar acumulou uma série de episódios interessantes.

Certo dia, um jipe cheio de miltares parou na frente da editora. Uma visita bastante assustadora para quem publicava quadrinhos eróticos em plena ditadura. Para surpresa de todos, não era nenhuma batida policial. Mozart Couto, filho de militar, resolvera visitar a editora e pegara carona em uma avião do exército. "Era muito estranho", afirma Seto. "Os militares levavam o garoto de jipe para todos os lugares".

O desenhista Bonini, que morara anteriormente no Rio de Janeiro, era paranóico com assaltos a ônibus, dos quais ele já havia sido vítima 18 vezes. Certa vez, quando ele e Watson estavam indo para o centro de Curitiba, um sujeito mal encarado entrou no veículo. Bonini não pensou duas vezes: desceu ali mesmo. Watson, que não conhecia a cidade, ficou sozinho no ônibus e acabou se perdendo.

AS REVISTAS

A Grafipar lançou uma quantidade e uma variedade enorme de títulos.

Começou com uma revista chamada Eros, mas como outra editora tinha direito sobre o nome, a publicação mudou para Quadrinhos Eróticos. Há males que vêm para bem. Com a mudança de nome, as vendas dispararam e o dono da Grafipar se empolgou.

Depois de Quadrinhos Eróticos vieram Fargo, sobre faroeste, Sertão e Pampas, com histórias que se passavam no sul do país, Perícia, sobre crimes, Neuros, de terror, e Próton. Esta última pretendia seguir a linha Heavy Metal, misturando fantasia com ficção científica

Quase todas as histórias, incluindo as policiais e de terror, tinham toques de erotismo. Não era propriamente pornografia, mas, desculpem o trocadilho, abundavam mulheres nuas.

Alguns casos são curiosos. A revista Horóscopo do Rose publicava quadrinhos baseados nos deuses do Olimpo. E Roberto Kussumoto, o desenhista, fazia Plutão com a cara do poeta Paulo Leminski, marido da editora da revista, Alice Ruiz.

Outra revista curiosa era a Super-gay, um descarado plágio do Capitão Gay, do humorista Jô Soares. Na revista, boa parte das personagens da DC e da Marvel ganhavam sua versão rosa-choque e tínhamos heróis como o Aquagay, o Thorvelhinho, o Húlia e o Flashhomo. As poucas mulheres que apareciam era... advinhem... sapatões! O desenho era de Watson, que dava um verdadeiro show, botando no chinelo muitos desenhistas gringos. Mas Jô Soares, que sempre leu quadrinhos, descobriu a artimanha e reclamou à editora. O Super-gay foi vencido pelo Capitão Gay.

Outro grande momento da Grafipar foi a revista Fêmeas. Fêmeas apresentava histórias de aventura no melhor estilo Frank Frazzetta. Fêmeas eram as heroinas bárbaras, como Ulla, Maíra, Ssara e Hyania, que, entre uma aventura e outra transavam com vilões, heróis e qualquer um que aparecesse pela frente. O mundo de Fêmeas era aquele no qual todo garoto gostaria de viver: muita aventura e mulheres bonitas. Mozart Couto e Rodval Matias publicaram na revista alguns dos seus melhores trabalhos.

Cláudio Seto conta que toda vez aparecia algum agente oferecendo uma revista gringa ao dono da Grafipar, Faruk El-Khatib, os editores faziam um similar nacional e apresentavam. Com essa estratégia, conseguiram que a editora publicasse apenas HQB.

Para aproveitar o sucesso do filme Heavy Metal, por exemplo, Seto bolou o Almanaque Xanadu, que trazia histórias de Mozart Couto, Watson e matérias sobre a revista e o filme Heavy Metal. Nessa época as revistas já traziam na capa o selo "Bico de Pena", que era para ser uma subdivisão da grafipar, especializada apenas em quadrinhos. Mas o projeto não foi em frente. A editora acabou antes.

Um pouco antes da Grafipar completar cinco anos, a crise econômica acabou com a editora. As últimas revistas foram publicadas em 1983. Muitos desenhistas foram para São Paulo ou Rio de Janeiro. Os roteiristas foram trabalhar com publicidade ou jornalismo. Os ilustradores que ficaram tornaram-se chargistas de jornais ou pintores. Alguns, como Rogério Dias, tornaram-se pintores famosos e reconhecidos. Outros vendem suas obras em feiras.

O sonho havia acabado. Curitiba deixava de ser um ponto de referência dos quadrinhos nacionais, mas a semente plantada ainda dá frutos. Atualmente há um movimento de quadrinhos em Curitiba cuja produção principal foi a revista Manticore, vencedora de vários prêmios, e mais recentemente o álbum O Gralha publicado pela Via Lettera Editora.

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