É bem provável que mais gente saiba pronunciar Benedict Cumberbatch do que dizer quem é o Doutor Estranho. Apesar de ter sido criado há mais de 50 anos, Stephen Strange passou quase os últimos 20 sem série própria, mais conhecido como essa figura coajduvante que só aparece em sagas ou quando surge uma ameaça mística na Marvel. Mas essas cinco décadas renderam histórias de qualidade, que praticamente povoaram o cantinho místico-mágico-lisérgico da editora.
Contos Estranhos e Magia Negra
A Strange Tales era uma das revistas de terror e monstros da Marvel Comics nos anos 1950. Com 100 edições de vida, ela foi remodelada: o Quarteto Fantástico estava bombando e ela passou a trazer aventuras solo do Tocha Humana junto a atrações especiais. Uma destas atrações apareceu em cinco páginas de Strange Tales #110, de julho de 1963: "Dr. Estranho, o Mestre da Magia Negra."
O Doutor Estranho já teve histórias revolucionárias, já foi motivo de polêmica religiosa, inspiração para viagens químicas e inclusive ganhou mais de uma versão em carne e osso - para telinha e telona. Confira na galeria abaixo a trajetória do personagem enquanto você se prepara para o Doutor Cumberstrange.
A primeira história
As cinco páginas são movimentadas: um homem acorda de sonhos conturbados, lembra que ouviu falar de um tal Doutor Estranho, "que mexe com magia negra" e vai procurá-lo no "pitoresco Greenwich Village". A partir daí se apresentam elementos e coadjuvantes do personagem que existem até hoje: a projeção em forma astral, a tutelagem do Ancião, o criado Wong, o Olho de Agamotto e seu primeiro vilão, Pesadelo.
Ditko
Steve Ditko - desenhista da Marvel há vários anos, que já se envolvera na criação do Homem-Aranha - apareceu na editora com as cinco primeiras páginas de "Sr. Estranho" prontas. Stan Lee, seu editor e colaborador, resolveu trocar "Sr." por "Dr." para evitar confusões com Sr. Fantástico. As referências místicas, os poderes de Estranho e o visual peculiar do herói são criações de Ditko. Lee ficou responsável pela verborragia.
A filha
Observação Obscura de Oshtur: Doutor Estranho tem uma filha com Clea. Ela chama-se Sofia, cresceu escondida do pai e tem aventuras místicas em Nova Orleans. A série criada por Jason Henderson e Greg Scott teve apenas UMA história publicada na revista Epic Anthology, em 2004. As história de Sofia Strange não seguiram porque a linha Epic foi vitimada por uma disputa editorial na Marvel. Esquecida desde então, ela tem todo jeito de recurso dramático a ser reaproveitado em histórias futuras do Doutor.
Chandu
Ditko e Lee não teriam como negar a inspiração em "Chandu, the Magician", herói do rádio que fez sucesso nos EUA nos anos 1930 e 1940. Chandu era o americano Frank Chandler, que havia estudado as artes místicas com um iogue na Índia e dominava poderes como projeção astral e criação de ilusões. O herói chegou a ter dois longas no cinema, nos anos 30, com Bela Lugosi.
Cumberstrange
A adaptação cinematográfica que estreia em novembro é a culminação de um projeto que já teve dúzias de roteiros e produtoras desde 1986. Depois de entrar nas ramificações cósmica (Guardiões da Galáxia) e urbana (Demolidor), agora é a vez da Marvel Studios explorar o vasto plano místico do Universo Marvel. A adaptação é uma história original que recorta diversos personagens e situações de histórias de sucesso do herói, desde a fase Ditko/Lee até recentes, como "O Juramento".
A origem
Diferente de muitos heróis Marvel, Doutor Estranho só teve sua origem contada na quarta aparição, em Strange Tales #115. Cirurgião de grande sucesso e grande arrogância, Stephen Strange sofre um acidente de carro no qual perde as mãos firmes que lhe valiam a fama profissional. Ele vai buscar a cura na Índia, onde encontra o Ancião e - depois de salvá-lo de um discípulo traidor, o Barão Mordo - resolve virar seu pupilo nas artes místicas. A vida de cirurgião e a arrogância ficam para trás.
Armado
Lançada em 2015, a série mensal mais recente do Doutor é comandada por Jason Aaron e Chris Bachalo. A principal ameaça é um grupo que quer extinguir a magia em todas as dimensões. Aaron e Bachalo voltam à tradição do herói, de visual doido e nomes bizarros, e adicionam armamentos que valorizam os talentos de artes marciais de Strange.
Watoomb
O grande barato das histórias do Dr. Estranho estava na imaginação visual de Steve Ditko. O herói viajava por outras dimensões carregadas de formas geométricas e orgânicas inspiradas no surrealismo e na arte oriental. Stan Lee tentava equiparar-se no texto criando uma cosmologia própria: o Livro do Vishanti, as Hordas de Hoggoth, os Ventos de Watoomb, os Sete Anéis de Raggadorr. Os nomes - com ares orientais, só que totalmente inventados - eram reaproveitados de velhos gibis Marvel e acabaram servindo para outras atrações místicas do Universo.
Minisséries
Mesmo nos 20 anos sem série própria, Estranho estrelou algumas boas minisséries. Strange, de J.M. Straczynski, Samm Barnes e Brandon Peterson, parece pensada como um roteiro de filme, com adaptações hollywoodianas à origem do Doutor. Mas a melhor é Doutor Estranho: O Juramento, por Brian K. Vaughan e Marcos Martin, que também joga com a origem e com todo o histórico de Estranho até então.
Refresco elétrico
Outro barato era mais literal: a geração chapada que via nos desenhos de Ditko e na cosmologia de Lee a inspiração para viagens da mente. Em um livro-reportagem que simboliza a época, O Teste do Ácido do Refresco Elétrico, Tom Wolfe acompanha Ken Kesey e seus Merry Pranksters "divulgando" o LSD pelos EUA. Os gibis Marvel são citados frequentemente como leitura dos Pranksters - e o Dr. Estranho é o nome que mais aparece.
Doutor Coadjuvante
Sem série mensal, Doutor Estranho passou 20 anos como um coadjuvante de luxo. Era praticamente uma piada pronta: toda vez que um herói Marvel tinha uma ameaça mística, era só bater na porta em Greenwich Village que o Doutor estava à disposição - afinal, nunca tinha uma aventura solo. Há boas histórias do herói nessa condição, como as da série Novos Vingadores durante o período em que ele foi integrante da equipe.
Dezessete
Steve Ditko criava argumento e desenho para as histórias do Dr. Estranho, enquanto Stan Lee preenchia os diálogos. Ditko fez uma ousadia para a época: criou uma história comprida, que envolvia todo o universo do herói até então, e que acabou durando 17 capítulos - quase um ano e meio de Strange Tales. É a aventura épica de Estranho contra o vilão Dormammu, cujo ponto alto é a introdução da figura Eternidade (que ainda circula pelo Universo Marvel). Depois do épico, Ditko saiu da Marvel - onde também desenhava o mega-sucesso Homem-Aranha - por motivos que nunca se explicaram direito.
Fase Vertigo
A série de Estranho tomou caminhos bastante doidos nos anos 1990, tal como transformá-lo em "Mago do Caos" e deixá-lo com um visual meio John Lennon - de óculos redondo e cabelo comprido. Roteiristas e desenhistas que depois fariam nome na Vertigo, como J.M. DeMatteis, Warren Ellis, Steve Yeowell, Peter Gross e Mark Buckingham, trabalharam na série nesta época. Entre mais mudanças no visual e de rumo na vida do mago, a série terminou no meio da falência da Marvel em meados da década.
Série própria
Em 1967, na edição 169, Strange Tales passou a se chamar Dr. Strange: Master of the Mystic Arts. A série titular começou recontando a origem do Doutor e logo ganhou Gene Colan, artista que recuperou a criatividade visual das dimensões místicas e dos vilões. As vendas baixas, contudo, levaram a uma medida desesperada: um novo uniforme, mais super-heroico, inclusive de máscara azul. Não deu certo. A série titular durou só 15 edições.
Doutor Mórdrido
Fruto de uma produtora que comprou os direitos de adaptação de gibis Marvel por preço de banana, Doctor Mordrid, de 1992, é mais uma adaptação do herói que chegou às telonas sem fazer sucesso. Com Jeffrey Combs no papel principal de "Mestre do Desconhecido", a única diferença para um filme do Dr. Estranho é que não se usa o nome do personagem Marvel e ele não tem barba. O motivo? A produtora perdeu o prazo de licenciamento em contrato, mas resolveu fazer o filme de qualquer jeito.
Bleecker Street 177A
A casa do Doutor Estranho, seu Sanctum Sanctorum, fica no Greenwich Village, bairro boêmio de Manhattan que é considerado nascente dos movimentos beat e hippie. Ela tem até endereço certo: Bleecker Street, 177A, segundo Doctor Strange #182. O endereço realmente existe, e é do prédio onde o roteirista Roy Thomas morava na época em que escrevia a HQ. Fãs tocam no interfone até hoje atrás do Mago Supremo.
Fase Dark
A terceira e mais duradoura série do herói, Doctor Strange: Sorcerer Supreme, estreia em 1988. Estranho agora tem companhia de outros discípulos - a feiticeira Topaz e o minotauro Rintrah. Ele perde o título de Mago Supremo, envolve-se com os Filhos da Meia-Noite (a linha "dark" da Marvel na época, que incluía Motoqueiro Fantasma, Morbius e outros) e ainda criou uma nova equipe, os Defensores Secretos.
Clea
Precursora da legging galaxy, Clea estreou junto a seu tio, o vilão Dormammu, em Strange Tales #126. Admiradora do Dr. Estranho, ela ajuda o herói e acaba sofrendo represálias pela traição ao familiar. Clea voltaria diversas vezes à vida do herói, acabando por fixar residência no Sanctum Sanctorum, onde torna-se aprendiz e par romântico de Stephen Strange.
Fase Caolho
No final dos anos 80, o herói teve sua revista cancelada e, editorialmente, voltou aos velhos tempos: dividindo uma nova encarnação da Strange Tales com histórias de outros personagens. Nessa nova fase, o Doutor perde todos seus artefatos místicos, toda sua biblioteca e, ainda por cima, o olho esquerdo. A busca por recuperar todo seu poder dura anos. O olho também acabou voltando.
Defensores
O final da série de Estranho deixou uma história inacabada, que o roteirista Roy Thomas resolveu encerrar em crossover com as séries do Hulk e de Namor. Thomas acabou juntando os três heróis numa nova superequipe, os Defensores, que estreou em Marvel Feature #1, em 1971. A equipe ganhou série própria no ano seguinte e seguiu forte durante quase 15 anos ininterruptos - nem todos com Estranho entre os integrantes -, mais umas versões reformuladas até os dias de hoje.
Roger Stern
O início dos anos 1980 trouxe uma das melhores fases do personagem nos quadrinhos, com roteiros de Roger Stern e desenhos de Marshall Rogers e Paul Smith. Estranho enfrentava inimigos místicos (entre eles, Drácula) acompanhado de Clea. No fim da década, Stern voltaria para uma das melhores histórias do herói: a graphic novel Doutor Estranho & Doutor Destino: Triunfo & Tormento, com desenhos de Mike Mignola.
Deus e o Mago Supremo
Estranho voltou a ter aventuras solo na revista Marvel Premiere em 1972. Steve Englehart e Frank Brunner formam a grande dupla da época: criam o vilão Shuma-Gorath, matam o Ancião e promovem Estranho a Mago Supremo da Terra. Numa história, Dr. Estranho testemunha Deus criando o universo. Stan Lee exigiu que os autores se retratassem: era "um deus", não "Deus". Englehart e amigos pregaram uma peça em Lee: mandaram uma carta assinada por um pastor fictício do Texas, elogiando a edição. Lee engoliu a isca, publicou a carta e dispensou a retratação dos autores.
O primeiro filme
Produzido para a TV em 1978 - pelo mesmo pessoal que fazia o seriado do Homem-Aranha -, o filme foi pensado como piloto para seriado. Stephen Strange é um psiquiatra interpretado por Peter Hooten, que vira o Mago Supremo para enfrentar Morgana Le Fey (Lucille Bluth novinha). A audiência foi fraca e o seriado nunca aconteceu. Mas haveria mais Estranho em live-action pela frente.
Segunda série
O sucesso das histórias na Marvel Premiere levou a Dr. Strange: Master of the Mystic Arts, segunda série mensal do personagem, em 1974. Esta durou mais de dez anos. Steve Englehart e Frank Brunner continuaram como principais autores, fornecendo mais inspiração para os chapados da época. Na primeira edição, Estranho tem uma longa conversa com a lagarta fumadora de narguilé de Alice no País das Maravilhas. O Dr. também aparecia na revista dos Defensores todo mês.