Tira de Mafalda, de Quino

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Notícia

No dia da morte de Quino, folhear Mafalda ganha outro significado

Das tirinhas dos anos 60 às provas escolares, personagem é atemporal

30.09.2020, às 16H39.
Atualizada em 30.09.2020, ÀS 18H52

Todo dia é dia de tirar Toda Mafalda da estante. Hoje, exatamente no dia de hoje, folhear Toda Mafalda tem outro significado.

Caio numa tira quase sem texto. Mafalda acorda, coça os olhos, fica em pé na cama. Aí olha para baixo, faz menção de descer. Para e pensa:

"É difícil juntar ânimo para descer ao mundo."

Num dia que nem hoje, Mafalda, é mesmo.

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De quando é a Mafalda?

Tenho 40 anos. Quem tem minha idade pode achar que Mafalda é dos tempos da nossa infância. Se você é mais novo, deve achar que Mafalda é da época dos seus pais, dos seus professores.

Na verdade, Quino parou de produzir Mafalda antes de eu nascer. A última tira saiu em 1973.

A primeira saiu em setembro de 1964 – completou 56 anos ontem, aliás. Quino teve nove anos de produção intensa com a menina, mas foram só nove anos. Menos que Calvin & Haroldo, muito menos que Garfield, bem menos que Peanuts.

Mas Mafalda seguiu nos jornais, seguiu nos livros, está nos adesivos em porta de quarto, bonecas, provas de colégio (“interprete esta tira”), numa infinidade de memes pela internet.


Mafalda não tem época.

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Mafalda anda pela casa. Vê uma pilha de roupa passada. O chão da casa brilhando. Louça lavada. Encontra a mãe com as mãos enfiadas na lava-roupa.

"Mamãe, o que você gostaria de ser se você vivesse?"

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"Não era minha intenção que ela durasse tanto. Eu esperava que o mundo melhorasse, mas a política liberal está tornando os ricos cada vez mais ricos e os pobres ainda mais pobres. O resultado dessa política é lastimável", Quino declarou ao jornalista Pedro Cirne de Albuquerque em 1999.

Dizem por aí que tiras, que todos os quadrinhos, são escape. Mesmo quando saem no jornal, do lado das notícias sobre o mundo vindo abaixo.

Mas esse negócio de escape é privilégio de Primeiro Mundo. Mafalda vivia (vive) num país onde os pais chegavam (chegam) em casa arrasados com o que gastaram no supermercado, onde era (é) perigoso falar de política, em que se olhava (olha) torto para a menina que não quer casar e quer ser independente. Era (é) a Argentina, mas podia (pode) ser o Brasil.

Quino ria de tudo isso com a gente. Risadas nervosas. É o máximo de escape que a gente tinha (tem).

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Folheando, cheguei numa clássica. Procure “abollar” no Google Imagens: é o primeiro resultado e vários resultados a seguir. Virou grafite, virou cartaz em manifestação de rua, virou camiseta.

Mafalda anda pela rua com Miguelito e eles encontram um policial. Mafalda aponta para o cassetete:

“Viu? Esse é o pauzinho de esmagar ideologias.”

* * *

Quino não foi só Mafalda. Saiu há dois anos no Brasil Isto Não É Tudo, um “best of” dos cartuns que ele produziu para um monte de jornais e revistas, ao longo de décadas.

É um material finíssimo. Finíssimo porque é da época em que os cartunistas tinham horas para dedicar aos detalhes de um rosto, à decoração do cenário, ao equilíbrio estético da página. Tudo isso para contar uma ideia simples, engraçadas, muitas vezes genial.

Meu cartum preferido é o que mostra uma sala de estar lotada daqueles guardanapinhos de crochê. Tem em cima de cada mesa, de cada aparador, em cima da televisão. Podia ter em cima do gato, do cachorro. A dona da casa está pondo mais um guardanapinho no seu lugar. O marido está colocando um guardanapo sobre o banquinho onde vai subir e se enforcar.

Para cartunistas, imagino, são aulas de hachuras, de traço econômico, de humor gráfico.

E, em boa parte, esses cartuns são mudos. Sem fala alguma. Dizem que Quino também era assim: quieto, fechado, às vezes arisco a pedidos de entrevista. Dizem, não; ele mesmo dizia: “Decidi desenhar porque falar me custa muito.”

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Mafalda mexe no seletor da tevê. Quem só conhece televisor com controle remoto pode precisar de uma nota de rodapé para explicar o que é “seletor da tevê”. Mas a ideia ainda vale hoje. Substitua por feed de rede social.

Enfim: Mafalda, mexendo no seletor da tevê.

"Será que tem coisa boa em algum canal? Nada! Em todos tem televisão."

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Nas últimas páginas de Toda Mafalda, há uma (rara) entrevista com Quino. “Quero morrer na Argentina”, ele diz. Conseguiu. Depois de anos entre Itália e seu país natal e depois da morte da esposa Alicia, em 2017, estava morando na cidadezinha de Chacras de Coria, perto de onde nasceu, Mendoza.

Mafalda, aquela personagem que ele desenhou por nove anos e quase nunca mais, é símbolo da Argentina. Tem a famosa estátua dela sentada num banco de esquina, em frente ao prédio onde Quino morou – os turistas fazem fila para sentar-se com ela e tirar foto. Bonecos, xícaras, quadros, roupas, ímãs de geladeira, livros de todos os formatos e preços: vende-se Mafalda por todo lugar na Argentina. Tudo com aqueles desenhos dos anos 60 e 70.

Diferente da grande maioria dos personagens licenciados, Mafalda não é só sorriso. Nas estampas, ela está de cara fechada e dedo em riste, de cabelos espivetados porque acabou de acordar, olhando preocupada para um globo terrestre. Quem vê Mafalda não vê só uma menininha de cartum – vê a menina crítica, que pensa e ensina a pensar.

A única coisa que nunca muda em Mafalda é a idade. Ela sempre terá seis anos.

Para Quino, infelizmente, a idade chegou. Mas olha só tudo que ele deixou: tudo que não envelhece jamais.

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