Entrevistar Alan Moore é uma experiência um pouco estranha. Mas uma das pessoas responsáveis por revolucionar a maneira como as histórias em quadrinhos são criadas (e percebidas) é, no fundo, um sujeito bem normal. Apesar, é claro, da aparência excêntrica e da fama de "ocultista que lida com deuses antigos em estranhos rituais", conquistada nas fotografias em que empunha cajados ornamentados, com a profética barba dançando ao vento, longos cabelos desgranhados e um olhar sinistro para a câmera. Era justamente esse tipo assustador que esperávamos encontrar - e ele sabe muito bem disso. E gosta.
Moore tem completa ciência da imagem curiosa que passa, com seus longos anéis prateados cobrindo a maior parte de seus dedos, e papos sobre adoração de antigos deuses-cobra (que, ele mesmo admite, já não passavam de um embuste no seculo II). Escolhas deliberadas que introduzem uma visão de mundo que resulta em histórias muito bem construídas e personagens realistas e tridimensionais. Ele percebe o lugar em que vivemos, suas relações e as pessoas com perigosa clareza, com fria objetividade. Ele vê como as peças se encaixam e entende com sensibilidade diversos lados de um mundo assustador, inseguro e muitas vezes feio e desagradável. Com esses dados, ele compõe suas histórias, que nos parecem incrívelmente verossímeis e incrivelmente inteligentes.
Moore e Melinda
Lost Girls
Lost Girls
Alan Moore
Lost Girls
Lost Girls
Moore tornou-se popular, entre dezenas de outras obras, ao criticar a extrema direita em V de Vingança. Depois, explorou as intrigas políticas da Guerra Fria em Watchmen, mostrou o coração negro e as diferenças sociais da Inglaterra Vitoriana em Do Inferno, fundiu a ficção fantástica e as aventuras do século XIX em A Liga dos Cavaleiros Extraordinários e, mais recentemente, concluiu uma obra íntima e controversa, Lost Girls, que alça a pornografia (Moore prefere a palavra à mais recatada "erotismo") a status de arte.
Lost Girls, escrita ao longo de 16 anos com uma artista que acabou tornando-se sua esposa, Melinda Gebbie, junta três personagens da fantasia clássica dos séculos XIX e XX: Dorothy, de O Mágico de Oz, Alice, de Alice no País das Maravilhas, e Wendy, de Peter Pan. As três se encontram em um pequeno hotel art noveau na Áustria em 1916 e relatam suas iniciações sexuais. O resultado é uma obra que mistura análise política do século passado, a vida pessoal das personagens, pressões sociais, arte, pintura, música e literatura, com muito, muito sexo.
Mas, antes de começar a entrevista, na qual ele define o mundo e seu trabalho, Moore avisa que vai fazer uma xícara de chá. Só então começamos a conversa.
OMELETE ENTREVISTA: ALAN MOORE
Alan Moore: Então, como eu posso te ajudar?
Lost Girls parece ter muita nostalgia associada. Tem muito art noveau, o nascimento do século passado e até o título, Lost Girls (Garotas Perdidas). Isso se relaciona a algo que você acha que foi perdido na sexualidade moderna?
Acho que isso provavelmente é verdade. Nós estávamos tentando capturar um momento na cultura Européia, antes que a Primeira Guerra tivesse acontecido e mudado essa cultura - talvez para sempre. Eu não sei se nós superamos a Primeira Guerra mesmo agora, em 2007. Foi cataclísmico e devastador. Havia uma cultura tão rica antes daquele ponto, e algo da pura feiúra mecânica da Primeira Guerra pareceu trazer à tona uma nova idade de modernismo selvagem, que, apesar de ter muitas coisas interessantes, deslocou algo. Um período talvez mais inocente da cultura foi deslocado. E a idéia de algo perdido, tanto em um nível nacional quando num nível pessoal, ressoa com as três garotas se distanciando das pessoas que elas eram quando mais jovens. Como se um certo tipo de personalidade inocente tenha sido perdida. Eu não quero dizer inocente em um sentido não-sexual, eu quero dizer que uma certa maneira inocente de encarar a sexualidade foi inevitavelmente perdida com a passagem do tempo e a maturidade. Portanto, sim, há um elemento de nostalgia mas... Não tanto nostalgia, mas uma tentativa de sublimar a perda.
Nostalgia geralmente é, quero dizer É considerada uma doença, uma espécie de volta para um possível e imaginário passado rosado, ignorando o presente. O que nós queríamos com Lost Girls era ressaltar certas coisas que foram perdidas pela cultura ou por nós mesmos como indivíduos. Não é uma obra completamente retroativa, está falando sobre o presente e... Bem, nesse sentido é bom que Lost Girls finalmente tenha emergido durante a presente administração de George Bush.
Você tece na obra uma comparação entre a violência da Primeira Guerra e a violência que estamos testemunhando agora, em outras guerras.
A coisa é que essas considerações não foram inteiramente intencionais, por que nós começamos a fazer Lost Girls em 1989, quando eu acredito que o pai de George Bush ainda estava na Casa Branca, e nós não tínhamos idéia de quando iríamos terminar este trabalho, e eu acho que poderíamos ter terminado, digamos, durante a administração do Clinton, quando as coisas teriam sido bem mais liberais. Mas eu acredito que muito do viés político do livro teria sido perdido, enquanto que, com ele saindo hoje no meio da tentativa de George W. Bush de transformar os EUA em uma teocracia medieval com "gameboys", ele adquiriu um contraste mais pesado. Eu não posso pensar em uma época melhor para a obra ter saído.
Temos a maior parte do mundo completamente imersa em uma guerra em potencial e, pior, é uma guerra contra uma qualidade abstrata: terror, que, é claro, nunca pode ser vencida. É como a "guerra às drogas", sabe? Você apenas pode declarar guerra a nações, você não pode a declarar guerra a conceitos abstratos - conforme eu acredito que a atual administração Norte-Americana e a Britânica estão provavelmente aprendendo, sete anos tarde demais para beneficiar a qualquer um.
Mas, certamente, nós estávamos cientes de que, com Lost Girls saindo sob a paisagem contemporânea, o livro seria especialmente incisivo, por passar-se numa época em que há uma guerra tomando conta da maior parte do planeta.
Além disso, há também essa volta moralista da direita conservadora Cristã nos EUA que, aparentemente, é muito anti-sexo, certamente anti-pornografia, portanto Lost Girls está desafiando a visão de mundo corrente de diversas maneiras e eu acho importante que o livro tenha saído agora.
Apesar da relevância política, artisticamente Lost Girls parece não se encaixar com os tempos contemporâneos. Você não tem muito da "pornografia artística" de hoje em dia e, subitamente, você e Melinda trazem esse trabalho que levou 16 anos para ser terminado e tem referencias a Stravinsky, Primeira Guerra, psicologia Freudiana e assim por diante. Onde você encaixaria Lost Girls na história da exploração do erotismo e da pornografia?
Bem, eu acho que Lost Girls é certamente o primeiro livro erótico com esse nível de ambição e com esse tipo de escala e atenção à narrativa e tudo mais, eu acho que é o primeiro livro erótico imaginado em uma escala tão grandiosa (risadas). Também é provavelmente um dos primeiros livros eróticos que verdadeiramente emergiu num mercado de massa, orgulhosamente declarando ser pornografia, portanto é um fenômeno muito moderno. Eu duvido que Lost Girls pudesse ter sido produzido antes de 2007. Quer dizer, nós simplesmente não tínhamos a tecnologia em termos de impressão para reproduzir a arte de Melinda até muito, muito recentemente, e, por outro lado, se tivéssemos demorado um pouco mais nós não teríamos os tambores nas prensas fotográficas, porque eles estão sendo descartados (a maioria dos artistas trabalha com computadores hoje em dia), portanto nós não teríamos conseguido fotografar fisicamente a arte de Melinda.
Assim, é muito moderna, mas também é muito retrógrada em certos aspectos. O livro olha para uma era dourada da fotografia. Em todas as sessões do "Livro Branco" de Lost Girls nos referimos a pessoas como Franz Von Bayros, Pierre Louis, há referencias de passagem ao Marquês de Sade, porque ele é muito importante na evolução da literatura erótica, mas eu sempre achei seu trabalho um pouco chato (risadas). Eu entendo o que ele queria, eu vejo o objetivo de todo esse material sadístico e escatológico feito para ultrajar as autoridades de seu tempo, mas a olhos modernos eu o acho um pouco entediante, repetitivo e desagradável.
Nós o referenciamos, mas nos focamos em pessoas como Colette, Oscar Wilde, alguns pintores e ilustradores conhecidos como Egon Schiele e alguns menos conhecidos como Aubrey Beardsley, e essa foi nossa maneira de fazer um pastiche do que pensamos serem alguns dos melhores elementos da era dourada da pornografia vitoriana.
Então nós estávamos tentando fazer algo que era muito contemporâneo na concepção, tendo uma história em quadrinhos com escala tão grandiosa, mas também algo que reconhecesse a história do erotismo e meio que defendesse a continuidade do erotismo e da pornografia livres de sanção ou do desprezo do mundo artístico "oficial".
Essa é uma das razões pelas quais o livro foi feito sem computadores, as cores e tudo mais?
E sei que, por volta da metade do trabalho, Melinda ficou um pouco preocupada, porque ela estava trabalhando sem parar, fazendo vinte camadas diferentes de cores só para atingir um tom de pele, e muitos dos amigos dela estavam ficando empolgados e entusiasmados com colorização por computador - e ela estava se perguntando se ficaria pra trás.
Mas eu assegurei a ela que me parecia provável que, conforme a colorização computadorizada se tornava mais e mais onipresente, as pessoas passariam a dar valor ao toque humano presente naquele trabalho, obviamente desenhado à mão, feito à mão. E eu acho que isso também é verdade em relação à encadernação de Lost Girls em si. Creio que, num futuro onde tudo estará numa tela, os belos artefatos que você pode segurar em suas mãos se tornarão muito mais valorosos. E eu acho que isso parece ter compensado com Lost Girls. Quer dizer, Chris [Staros, editor da Top Shelf Publishing, que lançou Lost Girls nos EUA] quase faliu obedecendo nossos mais delirantes caprichos no que diz respeito a encadernação, mas tudo se pagou. Eu acho que todo mundo aprecia ter um pequeno e maravilhoso artefato para segurar com suas mãos.
Então, sim, é um trabalho moderno em seu planejamento e execução, mas isso não é sinônimo de obsessão com computadores ou outros frutos similares da tecnologia. Eu tenho a tendência a pensar que, como alguém estava me dizendo outro dia, no futuro computadores serão objetos decorativos, você irá a feiras de arte e artesanato e vai encontrar pessoas com esses computadores que parecem antiguidades, como um lembrete dessa fase pela qual nós passamos, e eu acho que mesmo nesse futuro distante ainda haverá mídia impressa, porque as pessoas, no fim das contas, gostam de ter um objeto feito com beleza que elas possam segurar.
Você disse que as cores têm uma qualidade que não pode ser atingida a não ser que uma pessoa esteja fazendo o trabalho com suas mãos. Eu achei elas muito brilhantes, vivas e alegres, é como estar em uma loja de doces...
Bem, em algumas seqüências, sim, isso é verdade. Em outras, os esquemas de cores foram alterados para dar os efeitos que queríamos em particular. Por exemplo, a luz amarelada antes da tempestade, a luz cinza e amarela antes do tornado no primeiro flashback da Dorothy e em vários outros lugares. Uma das coisas que nós queríamos fazer era dar uma espécie de "calor amarelado" a todas as cenas que nós estávamos retratando - como você poderia achar, digamos, em belas ilustrações de livros para crianças.
Algumas das mulheres têm tons de pele como lindos confeitos rosa. Isso também tem parcialmente a ver com a psicologia do público que nós queríamos atingir, porque nós queríamos atingir homens e mulheres mas, francamente, você não tem que pensar muito em como deixar homens provocados, sabe? Homens não têm muitos preconceitos e respondem a praticamente qualquer coisa. Mulheres são o problema e, tradicionalmente, pornografia tem sido algo para o qual mulheres realmente não tem muita razão para querer olhar, algo que tem sempre sido feito de acordo com um ponto de vista estritamente heterossexual, é sempre desagradável a qualquer feminilidade, tem uma espécie de sensibilidade brutal e masculina.
Os quartos são feios, as mulheres parecem frias, vulneráveis e um pouco tristes, os homens parecem feios, a luz é sempre colocada como se uma cirurgia cerebral estivesse acontecendo - então você pode ver cada poro e cada ruga, parece que eles têm a intenção de fazer o sexo parecer o mais feio possível, e talvez sexo pareça algo feio se você o filmar sob forte luz de rua, mas essa não é a maneira como a maioria de nós percebe o sexo. A maioria de nós, quando está envolvida em momentos íntimos como união sexual, está vendo o mundo através de luzes muito macias, quentes e românticas, e era isso que nós queríamos capturar com os desenhos de Lost Girls, um ambiente que fosse muito bonito e convidativo, especialmente para leitoras que não haviam encontrado ambientes como esse em histórias eróticas antes.
Você teve boas respostas de mulheres nesse sentido? Porque, normalmente, mulheres não são protagonistas de histórias pornográficas, muito menos co-autoras.
Bem, mulheres frequentemente são protagonistas de histórias eróticas, mas elas são mulheres escritas por homens. Você não tem que ir muito longe para achar um exemplo: Fanny Hill, Moll Flanders... Lost Girls tem mulheres escritas por um homem também, mas eu gosto de pensar que sou bastante bom em escrever mulheres críveis. Em meus outros quadrinhos isso foi algo do qual eu sempre me orgulhei, até certo ponto. Eu não estou dizendo que elas são completamente autênticas, mas eu acho que consigo fazer mais do que muitos dos meus contemporâneos.
Com Lost Girls, obviamente, se não fosse pelo fato de que Melinda estava trabalhando comigo nisso, já que isso foi, como você apontou, uma colaboração entre um homem e uma mulher, eu não acho que teria funcionado, em um milhão de anos eu não acho que teria funcionado. Mesmo se fossem duas mulheres trabalhando, o resultado seria puramente a visão feminina do erótico, e o mesmo aconteceria se fossem dois homens. Mas nossa colaboração permitiu que nós dois pudéssemos expressar nossas sensibilidades e trazer algo na arte e nas palavras que é agradável e empolgante aos dois. Esse foi o critério que usamos nos dezesseis anos em que trabalhamos nesse livro.
Isso foi uma parte muito importante de Lost Girls. Foi um processo quase alquímico. Eu sei que muitos dos alquimistas originais costumavam trabalhar em parcerias de macho/fêmea porque isso expressa a verdadeira natureza da alquimia, que é, num nível criativo ou místico, em muito uma combinação sexual de elementos e eu acho que esse era o nosso objetivo com Lost Girls, combinar ambos os lados da equação sexual nas sensibilidades do livro, com o intuito de trazer uma espécie de fusão nova.
E vocês tiveram boas respostas de mulheres?
Nós tivemos excelentes respostas. Quando a Melinda esteve em San Diego [na Comic-Con] ela me disse que metade das pessoas comprando o livro eram mulheres, e houve essa pequena história particularmente adorável que ele me contou sobre como uma mulher havia comprado o livro no primeiro dia da convenção e voltou no dia seguinte, para agradecer Melinda por ter feito o trabalho, com lágrimas nos olhos. Ela tinha passado a noite inteira acordada lendo.
A resposta tem sido incrivelmente calorosa e acredito que as mulheres têm ficado surpresas por terem gostado. Algumas porque, ao ouvirem que trata-se de um trabalho pornográfico, assumiram que seria como todo e qualquer outro trabalho pornográfico - entediante, talvez ofensivo. Mas nós temos recebido respostas muito boas de mulheres, algo que considero uma das coisas mais importantes para nós.
Em geral, a recepção de Lost Girls tem sido incrivelmente surpreendente e um pouco inspiradora. Nós não sabíamos se seríamos expulsos da cidade, sabe? (Risos). Particularmente devido ao atual clima religioso nos EUA. Mas nós não tivemos problema algum. Na verdade, tivemos o completo oposto. O governo canadense, inicialmente tendo apreendido Lost Girls na fronteira, recebeu um dossiê que o Chris Staros tinha montado, que incluía resenhas de prestigiosos jornais norte-americanos, e uma declaração de intenções, escrita por mim e Melinda. O resultado é que nós recebemos uma brilhante carta do governo canadense, dizendo que, sim, o livro incluía cenas de sexo infantil e bestialismo, mas de maneira alguma poderia ser considerado pornografia infantil - e também não poderia ser considerado obsceno, já que era um trabalho de tremendo benefício artístico e social. Era perfeito, quase uma resenha do governo!
A resposta tem sido tão boa que nós nos perguntamos sempre se isso é algum tipo de estranho e maravilhoso sonho e nós dois vamos acordar e descobrir que na verdade estamos na prisão esperando ser executados ou algo assim (muitas risadas).
Não, não, a resposta tem sido maravilhosa; inicialmente graças à pura beleza física da coisa que é 99% devida à arte de Melinda e à maravilhosa produção da Top Shelf. Isso ajudou a prevenir muitos dos possíveis comentários negativos.
A única resposta negativa que eu ouvi foi do Comics Journal, que tem uma espécie de... bem, porque eu disse que não estava mais interessado em fazer mais entrevistas com eles, eles tendem a ter uma certa birra comigo. Mas eles conseguiram que a Melinda cedesse uma entrevista para eles - algo que ela fez porque estava genuinamente pensando no melhor para todo mundo envolvido e a moça mandada pra entrevistar ela parecia uma pessoa boa -, e então, na edição antes de publicar a entrevista, o Comics Journal publicou uma crítica horrível de Lost Girls, e depois duas críticas piores ainda, para balancear, e mais uma no website, só pra se alguém tivesse perdido as três resenhas ruins na revista (risos). Mas no próximo número o novo editor se desculpou e escreveu um editorial em defesa de Lost Girls (quando na verdade a única coisa da qual a gente precisava de defesa era do Comics Journal). (Risadas.) Mas fora isso tem sido bem bom e, como eu disse, nós estamos com nossos corações acalentados e até certo ponto ficamos atônitos pela resposta, já que ela tem sido tão boa.