Grande favorito ao Oscar 2024, Oppenheimer explorou as entranhas do Projeto Manhattan e como as explosões das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki pesaram sobre os ombros do cientista vivido por Cillian Murphy. Embora não explore as consequências do ataque americano no povo japonês, o filme de Christopher Nolan é permeado pela paranoia dos danos que o poder nuclear poderia causar no mundo. Como já se sabe, as décadas seguintes à Segunda Guerra Mundial foram marcadas pela Guerra Fria entre Estados Unidos e União Soviética, com ambas as potências fortalecendo e posicionando seu arsenal nuclear de forma estratégica. Além disso, os países também entraram na Corrida Espacial, desenvolvendo programas dedicados a explorar o universo além da nossa atmosfera.
Enquanto Oppenheimer mostrou a semente do conflito ideológico que se perpetuou por cinco décadas (e que, de certa forma, continua vivo até hoje), muito dos efeitos do medo criado após Hiroshima e Nagasaki pode ser facilmente percebido na cultura pop. Já uma potência hollywoodiana, a Disney lançou novos desenhos que mostravam seus principais mascotes dando instruções de como (tentar) sobreviver a um ataque atômico. As TVs norte-americanas também transmitiam vários informes e anúncios sobre abrigos nucleares, imbuindo medo nas famílias médias dos EUA e indiretamente dando combustível à criatividade de alguns criadores que mudaram a indústria do entretenimento, inclusive no mundo dos quadrinhos.
Antes dos anos 1960, a DC Comics dominava o mercado de heróis usando fundamentos irreais, como alienígenas, semi-deuses, magia e bilionários conscientes. À época, a Marvel ainda engatinhava na construção de seu elenco, mas encontrou na Era Atômica e na Corrida Espacial o pano de fundo perfeito para expandir seu universo. Já em 1961, a editora lançou Quarteto Fantástico, primeiro supergrupo do selo, criado por Jack Kirby e Stan Lee, cujos poderes se originaram após o contato de seus protagonistas com radiação cósmica durante uma expedição espacial.
Ao longo de suas primeiras aventuras, a Primeira Família da Marvel lidou com as consequências do uso bélico da energia atômica. Em suas quatro edições de lançamento, os vilões Toupeira e Homem Milagroso roubaram usinas nucleares para usar seus poderes para fins nefastos, enquanto Namor, redescoberto na superfície pelo Tocha-Humana, jurava vingança contra à superfície após encontrar Atlantis devastada por testes de armas nucleares.
Relacionável com a vida do americano médio da época, o Quarteto começava a construir a fama de editora realista que a Marvel passaria a usar como distintivo nas décadas seguintes. Abordando temas àquela altura próximos de seus leitores, o selo se inspiraria em eventos e pessoas reais para construir seus principais personagens, gerando inclusive comparações entre Reed Richards/Senhor Fantástico com J. Robert Oppenheimer por causa de sua genialidade e aversão ao uso da ciência como arma de destruição em massa — preocupação que o cientista expressou de forma mais crítica após a criação da bomba de hidrogênio.
Reed não era o único personagem dentro da Marvel a discutir os perigos do avanço tecnológico e bélico na Era Atômica. Em 1962, a Casa das Ideias apresentava o Incrível Hulk, herói que nascera após o cientista Bruce Banner ser bombardeado com radiação gama durante um teste nuclear. Mais do que uma simples atualização do clássico O Médico e o Monstro, o Gigante Esmeralda era uma metáfora para o potencial da energia nuclear, para o bem e para o mal. Embora ainda um dos principais mocinhos da casa, o personagem perdia com facilidade o controle sobre a própria raiva e tinha propensão a sair destruindo tudo o que via ao seu redor, causando medo e paranoia na população e rapidamente sendo visto como uma ameaça — não muito diferente de como Oppenheimer, por exemplo, via sua infame descoberta.
No mesmo ano, Lee e Steve Ditko lançaram também o Homem-Aranha, até hoje o maior personagem da Marvel e que, como não podia deixar de ser, tinha suas origens diretamente ligadas ao desenvolvimento da tecnologia nuclear. A história você já conhece: aos 15 anos, Peter Parker é picado por uma aranha radioativa e ganha poderes que lhe dão a força proporcional, os reflexos e as habilidades naturais dos pequenos aracnídeos. Assim como o Quarteto, a galeria de vilões do Amigão da Vizinhança também estava cheia de cientistas mal-intencionados que usavam sua genialidade e a tecnologia que criavam para fins vilanescos. Parker, um cientista por si só, contava tanto com seus conhecimentos científicos quanto com sua força para derrotar seus oponentes, usando a ciência para ajudar os mais fracos e não para intimidá-los e oprimi-los. Entendendo o surgimento do Teioso em plena ascensão da energia atômica, não é absurdo pensar na famosa frase de Tio Ben, “com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”, como um questionamento moral do uso da física nuclear para fins destrutivos, similar ao enfrentado pelo protagonista de Oppenheimer.
E como se faltassem exemplos da influência dos efeitos da bomba atômica em suas páginas, a Marvel introduziu mais um grupo de heróis, cuja origem tem ligação direta com o avanço nuclear em 1963: os X-Men. Também metáfora para o movimento de direitos civis da população negra dos EUA, os mutantes nasceram de (obviamente) uma mutação genética causada pela radioatividade, com novos Homo superiores nascendo à medida que a energia atômica se popularizava no mundo. Não à toa, os personagens ficaram conhecidos como os Filhos do Átomo, título que até hoje é usado para mencioná-los nas HQs.
Também em 1963, a Casa das Ideias ainda lançou seu maior herói bélico até hoje, o bilionário Tony Stark, que ficaria conhecido como o Homem de Ferro. Embora suas histórias iniciais estivessem mais ligadas ao poderio militar dos EUA, com o Vingador Dourado enfrentando déspotas comunistas ao redor do mundo, o herói também enfrentou antagonistas armados com poderes nucleares. Mesmo com um tom mais “fogo contra fogo” do que seus colegas de editora no começo de sua trajetória, o personagem eventualmente também começou a abordar as ramificações morais do desenvolvimento de tecnologias tão poderosas.
A Era Atômica na Distinta Concorrência
Ainda que a Marvel tenha usado a Era Atômica como base para a criação de seu universo, isso não quer dizer que a DC tenha ficado alheia a esse movimento — afinal, os quadrinhos de herói sempre trouxeram algum grau de reflexão sobre a realidade. Ainda em 1961, a editora introduziu o Eléktron, uma atualização de seu personagem homônimo lançado nos anos 1940. Assim como muitos outros heróis da época, Ray Palmer era um cientista brilhante que buscava usar suas invenções para o bem, enquanto enfrentava vilões que viam a ciência como um caminho para a dominação mundial.
Nos anos 1970, foi a vez do Nuclear chegar às páginas da editora. Tal qual o Hulk na concorrente, o herói nasceu de uma explosão nuclear que fundiu os corpos e personalidades do estudante Ronald Raymond e do físico vencedor do Nobel Martin Stein, que se transformaram no homem em chamas capaz de controlar matéria não-orgânica a nível molecular. Seu principal adversário na época, Multiplex, nasceu da mesma explosão que uniu Raymond a Stein, mas com o efeito contrário — ao invés de se fundir com outra pessoa, o vilão podia se dividir em diferentes corpos com seus poderes de fissão. Ex-empregado de Stein, ele se alimenta de energia nuclear para se tornar mais forte. Em mais uma comparação com o Gigante Esmeralda da Casa das Ideias, Multiplex era um retrato do potencial destrutivo da energia atômica quando usada para fins nefastos.
Por fim, temos aquele que é considerado por muitos o personagem mais poderoso da DC (ou, pelo menos, da Era de Prata): o Capitão Átomo. Originalmente lançado pela Charlton Comics em 1960, o Capitão original é um exemplo típico do herói quase todo-poderoso, também nascido de um experimento mal-sucedido. Após ter seu corpo reduzido a átomos ao testar um foguete, o piloto militar e gênio da física Allen Adam se tornou um dos seres mais poderosos do mundo, sendo invulnerável, superforte, autossustentável e capaz de criar com facilidade explosões nucleares. Não bastasse ser basicamente uma usina nuclear humana, Adam também era praticamente onisciente, com seus poderes atômicos lhe concedendo sentidos extremamente aguçados. Remodelado após a Crise nas Infinitas Terras e rebatizado de Nathaniel Adam, o personagem manteve grande parte de seus poderes nos anos seguintes, mas sua origem foi alterada para aliar seus poderes a testes de armas de destruição em massa.
A versão original do Capitão Átomo, inclusive, é a inspiração por trás do Dr. Manhattan de Watchmen, clássico absoluto de Alan Moore e Dave Gibbons. Assim como sua contraparte da Charlton, Manhattan era um cientista que teve o corpo reduzido a átomos em um experimento nuclear e se tornou basicamente uma usina ambulante, embora agora realmente onisciente da realidade do espaço e tempo. Peão dos jogos políticos do governo dos EUA durante a Guerra Fria, levando a uma vitória americana na Guerra do Vietnã e mudando o curso da história que conhecemos,o “herói” de Moore nada mais é do que a forma física do potencial da física nuclear. Além de seu poder destrutivo, Manhattan auxiliou num avanço tecnológico antes tido como impossível para a época, levando à criação de carros elétricos ainda na década de 1970.
É claro que, graças a Nolan e seu filme mais recente, Oppenheimer e suas façanhas estão mais em evidência do que nunca entre o grande público. Mas, quando paramos para pensar sobre os grandes nomes da cultura pop nascidos da destruição causada por suas descobertas, é impossível dizer que sua relevância só é sentida hoje na indústria por causa da produção indicada ao Oscar.