QUADRINHOFILIA: HISTÓRIA (DO BRASIL) EM QUADRINHOS
Como todo mundo bem sabe, em seus pouco mais de 500 anos de história oficial, nosso país tem uma triste tendência ao descaso com seu passado. Não sabemos de onde viemos, nem quem somos. Falando especificamente em quadrinhos: a quantidade de personagens nacionais circulando atualmente é desproporcionalmente inferior aos heróis norte-americanos e mangás que lotam as prateleiras de bancas e livrarias. Mesmo o quadrinho europeu, que anda meio tímido por aqui, ainda é capaz de ser mais expressivo em números do que a produção local.
Assim sendo, fica difícil a fomentação de uma identidade aos quadrinhos nativos. Muito do que se vê é uma repetição de fórmulas, de conteúdos já usados e aprovados junto aos leitores pelos quadrinhos estrangeiros. Não que esse seja exatamente um demérito, mas a simples repetição, invariavelmente leva à comparação com o original. Nisso, é óbvio que o leitor não vai deixar de adquirir um produto que já conhece em prol de outro que ele sabe de antemão ser é uma apropriação dos mesmos conceitos. Então, que caminho resta aos autores nacionais em busca de inspiração e sedução dos arredios leitores? Restam vários. Opções que fogem do óbvio não faltam. E uma delas é falar de nossa própria história.
ENTÃO É VER PARA CRER?
Nisso você deve estar pensando: Oh, Não! História do Brasil é muito chata!
Nunca aconteceu nada de interessante aqui! Eu lembro daquelas aulas horríveis no colégio!
Bem, é certo que, da forma como a historia nos é relatada em certos livros didáticos, ela pode ser de fato um convite à repulsa. Mas não estamos falando de datas decoradas, mas sim de pessoas sofrendo, amando, lutando, vivendo e morrendo em um determinado momento histórico. E isso, senhores, é pano de fundo para incríveis histórias.
Lembre-se que o Brasil já devastou um país inteiro no século 19 (o Paraguai). Isso sem falar em cidades inteiras aqui mesmo: lembra de Canudos? Nosso país já viu a violência do Cangaço, passou por ditaduras, foi ocupado por holandeses e franceses para desgosto dos mandatários portugueses e chegou até mesmo a enviar seus despreparados pracinhas para a 2ª Guerra Mundial. Enfim, batalhas não faltam em nossa história. Mas deixando a belicosidade de lado um pouco, podemos falar dos conflitos entre colonos, jesuítas, índios, escravos... Há tanto não dito sobre as imigrações que aconteceram no século 19 em diante, do tráfico de drogas, das conspirações políticas, do suicídio de Getúlio Vargas...
Não venham me dizer os descrentes que não há como achar isso tudo interessante. É só uma questão de como contar essas histórias de maneira envolvente. Seja do ponto de vista histórico ou da ficção. Ok, se você não crê, vou lhe dar alguns exemplos recentes de ótimos quadrinhos que usam a nossa história como pano de fundo.
QUER AÇÃO E ROMANCE? LEIA GUERREIROS DAS DUNAS
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Não, não é um novo supergrupo de heróis nacionais. Mas o título deixa clara a vocação aventuresca dessa saga que se passa em um interessantíssimo momento no início da colonização de nosso teritório. Produzido num sistema de cooperativa, utilizando a Lei de Cultura Municipal de Natal, no Rio Grande do Norte, Os guerreiros das dunas - Cap. 1 - A invasão, editado pelo Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, é fruto dos esforços do roteirista Emanoel Amaral, e dos desenhistas Watson Portela, Gilvan Lira e Márcio Coelho.
Nesse primeiro volume (de um total de quatro álbuns), vemos a nação dos índios potiguaras (antropófagos aliados aos franceses, que ocupavam a região de Natal em 1597) ter seu cotidiano invadido pelos portugueses, que partiram para a ofensiva a fim de expulsar os franceses. O resultado foi uma guerra em que o maior perdedor, claro, foram os nativos. Antes da batalha, o foco do livro é no choque de costumes entre nativos e aliados. Há europeus convivendo com a tribo, um índio potiguara na Europa e até um mestiço vivendo entre os Potiguaras. Há a preocupação de mostrar o cotidiano da tribo e até mesmo a presença de uma heroína na figura de Jandu (cujo nome na língua potiguar significa Ema), mulher de grande força e beleza e que seduz os jovens da tribo.
Os índios são todos desenhados com portes atléticos e um pouco idealizados. Aí reside a licença poética dentro da correção histórica que serve de base ao livro, afinal, este é um quadrinho de aventura. A arte do veterano (e sumido) Watson Portela se adequou perfeitamente à proposta do livro. Afinal, Watson sempre foi famoso por suas heroínas sensuais e com o cuidado com a anatomia. Sem extravagâncias, o desenho tem uma homogeneidade que surpreende. Principalmente porque as últimas 13 páginas foram desenhas por Gilvan Lira e Márcio Coelho, que assumiram o desafio de seguir o estilo do mestre, que saiu do projeto antes do fim por motivos pessoais.
Talvez o único pecado desse primeiro volume da série seja acelerar o ritmo da narrativa para apresentar os primeiros combates antes do fim dessa edição e deixar um bom gancho para a segunda parte da aventura. Esta mudança destoa do ritmo mais lento e fluído do início da história, mas não chega a ser um problema que comprometa o todo.
Além disso, o álbum vem acrescido de traduções para todos os termos da língua dos potiguaras, inclusive canções e de uma ótima bibliografia para quem quiser se aprofundar no assunto. Guerreiros das Dunas é só uma de inúmeras histórias reais que estão à espera da redescoberta por parte dos leitores. Para saber mais e comprar, visite www.guerreirosdasdunas.com.br.
VOCÊ JÁ OUVIU FALAR DO CHALAÇHA? POLÍTICA E HUMOR, SIM SENHOR.
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Provavelmente não ouviu. Pois saiba que esse escroque foi uma das figuras mais influentes no Brasil imperial, quando Dom Pedro I era nosso estimado príncipe-regente. Obviamente, por ser um escroque, o malandro não é citado nos livros didáticos de história. É muito mais correto falar das altruístas atitudes do imperador no Dia do Fico ou na Declaração da Independência do que falar das suas bebedeiras, brigas e, claro, suas aventuras amorosas, tudo sob os arranjos de seu fiel braço direito, Chalaça. Pois é sobre essa faceta tão inusitada e nada pomposa de nosso passado que a dupla André Diniz (roteiro) e Antonio Eder (desenho) falam neste álbum editado pela Conrad. Tendo como fio condutor a vida do malandro auxiliar de Dom Pedro I, os autores nos conduzem às raízes de nosso presente em meio aos bastidores do poder: cobiça, conspiração e muita malandragem. Impossível não traçar um paralelo com nossa história atual e seus deputados e festas regadas a prostitutas de luxo e manipuladores de todos tipos. Já os desenhos de Eder não primam por uma reconstituição histórica fidelíssima em detalhes. Nem tão pouco ela se faz necessária. No traço cartunesco, o absurdo das situações se faz ainda mais contundente e apropriado.
Publicada incompleta na internet, essa série de histórias curtas foi concluída para o livro e, espera-se, seja a primeira de outros trabalhos que venham a desnudar os aspectos mais interessantes (senão infames) de nossa história.
Também de Diniz, em seu site www.nonaarte.com.br, está disponível para download (e também com algumas edições impresa à venda) a série Subversivos. Nela, um período recente é abordado sob a ótica de diversos personagens: estudantes, guerrilheiros, atores, policiais e torturadores. Subversivos é desenhada por diversos artistas e fala sobre os duros ano da Ditadura Militar. O assunto ainda é tabu e merece chegar ao conhecimento de toda a geração que cresceu após ela, ignorando um assombroso período de nossa história, que teimosamente ousamos esquecer rápido demais.
INSTRUINDO, DIVERTINDO E DIFUNDINDO
Agora pare e pense, quadrinhos não não seriam complementos fabulosos para os tradicionais livros de história? Não se prendendo apenas aos fatos, mas apresentando personagens paupáveis, os estudantes podem provavelmente entender melhor sua história e aprender a gostar dela. Os quadrinhos são uma ferramenta indispensável na aproximação entre aluno e o conteúdo dessa disciplina. Aos educadores que ainda não se habituaram a esse recurso ilimitado, fica o alerta: está na hora de se atualizar. Há muito tempo que quadrinhos não se restringem a super-heróis, Turma da Mônica e Disney.
José Aguiar portfólio: www.joseaguiar.com