Crise nas infinitas Terras |
Crise de Identidade |
Crise infinita |
Legado das estrelas |
Super-Homem, a reformulação por John Byrne |
Supergirl 1 |
O megacrossover Crise nas Infinitas Terras foi produzido na década de 1980, com maestria, por Marv Wolfman e George Pérez, com propósitos claros: simplificar o quadriverso DC, unificando as realidades paralelas numa linha temporal coesa e de fácil acesso a novos leitores, reescrevendo a história de seus principais heróis, buscando suas essências, que teriam se perdido ao longo das décadas. Super-Homem, Batman e Mulher-Maravilha tiveram suas origens recontadas pelos artistas de maior destaque na época, a Supermoça morreu durante a saga e foi apagada da existência, enquanto o Flash também se sacrificou e foi substituído por seu parceiro Kid Flash. Duas décadas depois, os eventos Crise de Identidade e Crise Infinita chegam abalando o Universo DC, abrindo espaço para discussões sobre os efeitos da maxissérie original, a situação da cronologia e do próprio cerne dos quadrinhos de super-heróis.
Mundos morreram, mundos viveram, e o universo nunca mais foi o mesmo. A frase que marcou Crise nas Infinitas Terras de certa forma aplica-se aos seguidores da editora. Se por um lado é fato concreto que o evento sacudiu o mercado e atraiu novos fãs para o Universo Original, também não podemos negar que os apreciadores mais tradicionais dos super-heróis afetados sentiram-se traídos. Décadas da mais rica mitologia acabaram jogadas no lixo (como no caso do Super-Homem), e um homem íntegro e destemido como o Lanterna Verde foi preso por dirigir bêbado e provocar um acidente, citando dois exemplos mais conhecidos. A cisão ocorre não apenas entre os leitores, mas também entre roteirista e editores, que, em primeira instância, também são leitores e fãs dos personagens, com suas preferências e visões pessoais sobre como deve ser o Universo DC (UDC). Assim, cada reformulação, mudança na continuidade ou morte de personagem, mais cedo ou mais tarde, acaba sendo desfeito e, uma vez mais, o leitor acaba perdido.
Analisemos inicialmente o aspecto da cronologia e sua importância. De início, antes mesmo do conceito das Infinitas Terras, não havia grande preocupação com uma seqüência ordenada dos acontecimentos. Tínhamos diferentes histórias para o primeiro encontro entre Clark Kent e Lois Lane, as explicações científicas para os superpoderes do Homem de Aço viviam mudando, e novas fases de sua vida eram introduzidas nas aventuras do Superboy em Smallville. Seguindo o exemplo do Universo Marvel, Crise tentou mudar isso, mas os problemas não tardaram a aparecer. Poucos anos após o reinício do UDC, a reformulação do Gavião Negro foi publicada contradizendo as aparições do personagem nas revistas da Liga da Justiça e do Super-Homem, e a Legião dos Super-Heróis também foi vítima de um retcon (termo usado para continuidade retroativa) quando Valor e Laurel Gand substituíram Superboy e Supergirl como inspiração para os aventureiros do século 30. A saga Zero Hora, de Dan Jurgens, tentou reordenar a casa, mas sem muito sucesso. Posteriormente foi a vez de Mark Waid introduzir o conceito do Hipertempo, validando todas as linhas temporais e versões de personagens já imaginadas.
Segundo a política vigente da editora, a cronologia deve funcionar a serviço das histórias. Nunca o contrário! Alguns casos recentes são emblemáticos. O Super-Homem teve sua origem novamente modificada, desta vez por Mark Waid, na série O Legado das Estrelas, que desfez boa parte do trabalho de John Byrne em sua reformulação pós-Crise. O planeta Krypton voltou a ser um paraíso perdido, Clark Kent e Lex Luthor foram amigos durante a adolescência em Smallville, e o herói voltou a adotar a postura de jornalista tímido e pacato como disfarce em Metrópolis. Paralelamente, Jeph Loeb trouxe de volta a Supergirl nas páginas de Superman/Batman, livrando-se do estigma de que Kal-El deveria ser o único sobrevivente de seu planeta. John Byrne, por sua vez, reintroduziu a Patrulha do Destino original num arco de histórias da revista JLA, desconsiderando todas as aparições anteriores da equipe, como a cultuada fase de Grant Morrison. Enquanto a DC tenta aproximar suas histórias da realidade tratando de temas relevantes, personagens outrora falecidos como Hal Jorndan, Donna Troy e o Arqueiro Verde, acabam voltando à vida. Somos levados a questionar se realmente herdamos algo da Crise.
Qual é, afinal, a importância da cronologia? Ela deve mesmo ser respeitada pelos roteiristas? Uma realidade em que o herói, em todas as suas histórias, escondesse a identidade secreta de seu interesse romântico e derrotasse o vilão para salvar o mundo, logo poderia se tornar cansativa. Torna-se necessário, pois, um senso de evolução. A relação amorosa se complica, o vilão busca vingança conhecendo fraquezas do protagonista e o mundo volta a ser ameaçado. Começa a se desenvolver a cronologia do personagem. Acompanhamos a vida dos nossos heróis preferidos e amadurecemos com eles. Vimos Clark Kent revelar o segredo a Lois Lane e testemunhamos seu casamento. Dick Grayson abandonou o uniforme de Robin, tornou-se Asa Noturna, saindo da sombra do Morcego. Após o trauma da morte dos pais, Bruce Wayne perdeu também o pupilo Jason Todd. Bárbara Gordon foi aleijada pelo Coringa, ressurgindo como Oráculo. Com o desenvolvimento da cronologia, os personagens ganham complexidade e uma vida, que nós acompanhamos a cada passo, tal como um amigo íntimo. Sem dúvida, a importância é premente. Em obras autorais como Sin City, de Frank Miller, ou Estranhos no Paraíso, de Terry Moore, a utilização de um retcon seria impensável. No caso do Universo DC, todavia, no qual as revistas atravessam gerações, muitos aspectos tornam-se obsoletos, e a solução é preservar os aspectos básicos adaptando-os a cada período histórico distinto.
Chegamos à polêmica envolvendo a minissérie Crise de Indentidade, escrita pelo romancista Brad Meltzer, e a Crise Infinita, de Geoff Johns. No segundo número da obra de Meltzer, temos a revelação de que os heróis da Liga da Justiça, no período conhecido como a Era de Bronze, decidiram fazer uma espécie de lavagem cerebral num vilão que havia violentado a esposa do Homem-Elástico, tornando-o um completo idiota. A trama prosseguiu mostrando o preço que se paga por se assumir o papel de herói e seus atos questionáveis; foi sucesso de público e crítica, definindo o rumo das histórias posteriores do UDC. Começou então a Contagem Regressiva para a Crise infinita, com uma edição especial e novas minisséries que apresentaram mais perversão moral e sacrifícios heróicos. A proposta de Johns e do editor Dan Didio é justamente definir o heroísmo no momento mais sombrio. Mark Waid, escritor notório por contrapor a inocência da Era de Prata dos quadrinhos ao niilismo dos anos 1980, afirmou que a onda de pessimismo está com os dias contados, e que os heróis voltaram a ser heróis quando a nova Crise estiver encerrada. Outros discordam. Não há consenso, justamente porque cada um tem sua visão acerca do papel do super-herói. Convem lembrar que o Super-Homem em suas primeiras histórias era muito mais violento que o atual, e que antes do idealismo de Elliot S! Maggin, questões mercadológicas forçaram uma ética voltada para crianças. Didio sabe que não pode agradar a todos, mas está fazendo o necessário pela editora, aceitando riscos com liberdade criativa.
Diante de tantas incertezas quanto à cronologia e o papel dos personagens, ainda nos perguntamos se realmente existe uma verdadeira essência dos super-heróis. Se cada história escrita hoje poderá ser adulterada amanhã, se o salvador em que confiamos se revela um assassino traiçoeiro, o que nos resta, no final? O fato é que, seja como encarnação moderna dos mitos gregos ou como telenovela dotada de elementos fantásticos, os super-heróis continuam sendo a principal resposta aos anseios e inseguranças da humanidade. Nem toda história vai funcionar com todo mundo, nem todo herói gera o mesmo nível de identificação em todo leitor, mas a conexão emocional ainda se faz presente. Uma única história em 22 páginas pode fazer a diferença. Se ela for desconsiderada daqui a dez anos, que importa? O Cavaleiro das Trevas e o Reino do Amanhã já nasceram fora da cronologia e estão entre as mais influentes de suas décadas. Não estamos lendo sobre guerras interdimensionais e vigilantes mascarados, mas sobre nossa própria realidade. Mesmo ao cometer erros, o herói nos ensina algo sobre nós mesmos. Trazendo o potencial de melhorar nossas vidas e de inspirar através do exemplo, as histórias em quadrinhos de super-heróis seguem como uma relevante forma de expressão narrativa. Para tanto, às vezes, uma Crise se faz necessária.