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Winsor McCay e <i>Little Nemo in Slumberland</i>

Winsor McCay e <i>Little Nemo in Slumberland</i>

31.03.2005, às 00H00.
Atualizada em 16.11.2016, ÀS 15H07

Winsor McCay

Sonhos de um comilão

Sonhos de um comilão

O pequeno Nemo no País dos Sonhos

Gertie, o dinossauro

O mundo dos sonhos sempre representou um ambiente fascinante e nunca suficientemente explorado. Por ele, passaram vários mensageiros na história bíblica e a ele muitas visões de futuro são atribuídas, algumas transformadas em realidade, outras jamais transferidas de um mundo para outro (como a de Martin Luther King, Jr., por exemplo). Os sonhos povoaram e provavelmente continuarão a povoar o imaginário da humanidade, invadindo as artes e a cultura de massas. Na literatura, principalmente nas narrativas dirigidas ao público infantil, as histórias sonhadas foram muito utilizadas como tema, ressaltando-se obras como Alice no país das Maravilhas, de Lewis Carroll, e O mágico de Oz, de L. Frank Baum. Nas histórias em quadrinhos, especificamente, elas também chegaram bem cedo, logo nas primeiras décadas do século passado. E o fizeram pelas mãos de um mestre dessa arte, talvez até mesmo o maior deles. Winsor McCay.

Indigestão e pesadelo

O contato de McCay com o mundo dos sonhos não foi sempre totalmente cor-de-rosa. Primeiramente, o autor introduziu a problemática dos sonhos nos quadrinhos pelo seu lado mais negativo, o do pesadelo. Em Dream of rarebit fiend (no Brasil, conhecido como Sonhos de um comilão), de 1904, uma de suas primeiras séries, ele enfocava as desventuras oníricas de uma personagem adulta - normalmente um homem, embora, algumas vezes, as mulheres também pudessem protagonizar essas experiências -, preso nos braços, no caso nada carinhosos, de Morfeu.

McCay utilizava, então, o pseudônimo de Silas e já brincava com a linguagem seqüencial com uma familiaridade que poucos conseguiram posteriormente igualar. Em vários episódios, os códigos característicos das histórias em quadrinhos participavam como elementos constitutivos da narrativa: em um deles, por exemplo, um homem se vê quase asfixiado dentro dos limites de uma vinheta, à qual havia incendiado com seu próprio charuto, e da qual só consegue escapar subindo na borda do quadrinho e pulando para fora dele. Tanto nesse episódio específico como em todos os outros, o protagonista sempre despertava sobressaltado, prometendo a si mesmo que jamais comeria novamente um tipo de torta coberta por queijo derretido com cereja, que ele acusava de ter lhe causado o pesadelo - e daí o leitor ficava sabendo que tudo, afinal de contas, não havia passado de um sonho ruim...

Aventuras no País dos Sonhos

À primeira vista, essa fórmula parece facilmente cansar os leitores. E isso certamente ocorreria, não fosse a genialidade do autor. McCay recorreria a essa mesma estrutura iterativa para criar sua obra-prima, Little Nemo in Slumberland (O pequeno Nemo no País dos Sonhos), que ele publicou no jornal The New York Herald de 1905 a 1911, e, posteriormente, de 1924 a 1927. Dia após dia, o jovem Nemo (nome que significa Ninguém e foi provavelmente escolhido em alusão ao Capitão Nemo, do livro Vinte mil léguas submarinas, de Jules Verne) dormia e sonhava com aventuras maravilhosas.

No início, os sonhos constituíam eventos isolados. Aos poucos, o autor foi acrescentando neles o elemento da continuidade, sendo talvez um dos primeiros autores a fazer isso nos quadrinhos. Nemo acordava em um momento crítico de sua aventura (fato normalmente apresentado graficamente no último quadrinho, do lado direito do pé da página) e, no dia seguinte, reiniciava o sonho no exato ponto em que havia parado. Com isso, o mundo dos sonhos passava a ter existência própria, não se perdia quando o mundo real tomava conta da vida da personagem. Ganhava, então, um antes e um depois. Uma idéia genial, ainda mais se for considerado que a continuidade narrativa levaria vários anos para se firmar no ambiente das histórias em quadrinhos. Nesse sentido, como em vários outros, McCay estava muitos anos à frente de seu tempo.

Art nouveau e surrealismo

De fato, Little Nemo in Slumberland é uma das mais belas histórias em quadrinhos já realizadas, constituindo-se em modelo para dezenas de artistas. Com ela, mais que em qualquer outra, os quadrinhos atingiram seu mais alto apogeu artístico. Produzida no momento mesmo em que os Estados Unidos apresentavam alto interesse pela art nouveau, os sonhos do pequeno protagonista são povoados por paisagens totalmente pré-surrealistas, em que objetos e aparências se desfazem e se transformam, adquirindo formatos estranhos. Nessas histórias, como menciona Judith O’Sullivan, as aparências são instáveis, a natureza é hostil, os objetos juntam-se em construções irracionais, os artefatos mecânicos são freqüentemente ameaçadores, criando uma atmosfera em que o inesperado é comum, e da qual o mundano está excluído.

É notável o domínio de McCay sobre as técnicas narrativas e sobre a linguagem quadrinhística. Com ele, os comics deixam de ser padronizados e passam a adquirir formatos cada vez mais diversificados. Crescem. Encolhem. Alongam-se. Incham. Transformam-se em grandes estampas coloridas, preenchidas por gravuras de formatos caprichosos. Tudo isso, numa relação harmônica com os fatos narrados, acompanhando o universo de sonhos em que transcorriam as aventuras do protagonista, cujo invariável despertar no último quadrinho jamais descambou para a mediocridade.

Personagens de contos de fadas e ousadias visuais

Nos vários anos de suas aventuras, o pequeno Nemo encontrou um périplo de estranhas e singulares personagens, que trouxeram elementos dos contos de fadas tradicionais (o rei e a princesa, o anãozinho verde, o canibal arrependido), das festas carnavalescas ou dos museus populares, ambiente freqüentado pelo autor (animais exóticos, palhaços, exibicionistas, etc.).

Nessa série única, os leitores viram ousadias visuais como nunca antes haviam presenciado: a cama que cresce, adquire pernas e sai caminhando com o protagonista, em quadrinhos alongados que evidenciavam o crescimento do objeto retratado; o palácio que é virado de lado e depois retratado de cabeça para baixo, com as personagens, tão atônitas quanto os leitores, caminhando pelas paredes ou janelas, tentando entender a nova arquitetura com que se defrontavam; o jovem herói e seus companheiros que, em um momento em que se sentiam especialmente famintos, utilizam como alimento as próprias letras utilizadas para registrar o título da série. Tudo isso em uma obra em que a perfeição de cada quadro já é por si mesma uma atração peculiar, tal a virtuosidade gráfica atingida, a simetria e equilíbrio de cada página e suas ousadias simétricas.

Um verdadeiro show-man

O sucesso de Little Nemo incentivou seu autor a excursionar por outras pradarias artísticas.

Em 1911, levou sua personagem para o cinema de animação, iniciando uma carreira na qual iria se destacar como um dos nomes mais importantes que já participaram desse gênero cinematográfico, sendo colocado muitas vezes em pé de igualdade com Walt Disney.

Para animação produziria, entre outros, The story of a mosquito ou How a mosquito operates, em 1912, e Gertie, the bashful dinosaur, em 1914, hoje obras cultuadas pelos estudiosos da área.

Posteriormente, McCay ingressaria no teatro de variedades, uma atividade para a qual parecia sentir especial atração, misturando técnicas de animação e de desenho com um desempenho digno dos melhores homens de espetáculo. Ele era um verdadeiro show-man.

Mestre dos mestres

Devido a suas muitas atividades na área de animação e de vaudeville, McCay deixou de produzir as aventuras do pequeno Nemo em 1911, retornando a elas por um breve período em 1923, mas daí já sem o mesmo sucesso ou o mesmo vigor artístico. A genialidade, no entanto, continuava presente no autor, como demonstram os trabalhos cartunísticos nas páginas editoriais do New York Herald, aos quais se dedicou até sua aposentadoria. Morreu em 1934, época em que grandes autores de histórias em quadrinhos como Roy Crane, Milton Caniff e Burne Hogarth estavam começando a imitar algumas das técnicas que ele havia utilizado vinte anos antes.

No Brasil...

A principal obra de Winsor McCay foi publicada no Brasil na primeira fase do suplemento colorido infantil A gazeta infantil, carinhosamente chamado pelos leitores de Gazetinha, recebendo aqui a denominação de O sonho de Carlinhos. Posteriormente, durante a década de 1970, parte desta obra e de Dream of rarebit fiend foi publicada no Almanaque do Gibi nostalgia, da Rio Gráfica e Editora, do Rio de Janeiro, em grande formato.

Leia mais artigos da série Era uma vez nos quadrinhos. Clique aqui.

Leituras complementares

HARVEY, Robert C. Somnambulist of a vanished dream: Winsor McCays exploration of the medium’s potential. In: -------. The art of the funnies: an aesthetic history. Jackson: University Press of Mississippi, 1994. p. 21-34.

LEITE, Sebastião Uchoa. O sonho como um jogo. In: --------. Jogos e enganos. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ; Ed. 34, 1995. p. 86-110.

MARSCHALL, Richard. Winsor McCay (c.1867-1934). In: --------. America’s great comic-strip artists: from the Yellow Kid to Peanuts. New York: Stewart, Tabori & Chang, c1989. p. 75-95.

O´SULLIVAN, Judith. Winsor McCay, American master. In: --------. The great American comic strip: one hundred years of cartoon art. Boston: Bulfinch Press, 1990. p. 27-38.

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