Logo em sua primeira cena, Raio Negro, nova investida da CW no universo da DC, mostra a que veio. Ao invés de exibir o herói imponente, revelando seus poderes em clichês como um confronto com vilões dentro de um banco ou salvando um ônibus cheio de criancinhas de despencar de uma ponte, a série abre com o protagonista sendo humilhado na frente das filhas durante uma abordagem policial carregada de racismo. Essa escolha é esclarecedora em relação a todo o restante do capítulo de estreia e, certamente, ao conteúdo geral da temporada. Com um elenco formado majoritariamente por atores negros, a nova série de super-herói tem potencial para se destacar em relação às outras produções semelhantes do canal por justamente mostrar o debate social como ponto de partida de toda a trama.
Aliás, há outros pontos preliminares que distanciam a série de The Flash, Supergirl e das demais série do Arrowverso. Um deles é que Raio Negro não é uma história que mostra o surgimento do herói protagonista: quando a trama começa, Jefferson Pierce (Cress Williams), o Raio Negro, está aposentado do ofício de vigilante há nove anos e se tornou diretor de uma escola. A trama acompanha um homem que tentou mudar o mundo usando indiscriminadamente seus poderes a ponto deles se tornarem um problema em sua vida pessoal - em contrapartida, descobriu no ofício de educador uma forma mais eficiente de ajudar seu bairro a prosperar e se tornar um lugar mais seguro. O conflito ético da trama está em voltar a fazer algo que a própria experiência mostrou não ser a via mais eficiente, mas que, anos depois, volta a se mostrar necessário.
Isso não quer dizer, por outro lado, que dilemas juvenis como a descoberta da intensidade dos poderes e o dilema de quando é moralmente adequado usá-los estejam de fora da trama. Orbitando ao redor de Jefferson estão Anissa (Nafessa Williams) e Jennifer (China Anne McClain), as jovens filhas do protagonista. O primeiro episódio traz o que parece a primeira manifestação dos poderes de Anissa - nos quadrinhos, ela é uma heroína chamada Tormenta e forma uma dupla de combatentes com a irmã, sob o alter-ego de Rajada. Ao contrário de Jefferson, Anissa tem uma postura mais rebelde na hora de manifestar seu desagrado em relação à violência em seu bairro e ao descaso das autoridades - a impulsividade da jovem certamente renderá embates entre ela e o pai na hora de usar os poderes.
O principal da trama, na verdade, está na contextualização do meio como vilão principal da trama - ainda que ele ocasionalmente se personifique na pele de Tobias Whale (Marvin 'Krondon' Jones III). Há uma questão cíclica no primeiro episódio: Jefferson usa os poderes de Raio Negro para tentar salvar sua cidade da violência, mas começa a colocar a estabilidade de sua família em risco. Ele, então, suprime os poderes e busca outra via de ajudar sua comunidade; contudo, ao longo dos seus anos fora de ação, a violência aumenta a ponto de colocar a segurança de sua família em risco. É quando, então, ele revive o Raio Negro para salvar as próprias filhas. Há uma questão confusa na cabeça dele, já que Jefferson acreditava no alcance de seu papel como diretor de uma instituição de ensino e foi obrigado a encarar que, sozinho, ele não é tão eficiente.
Aliás, essa é uma mensagem interessante em Jefferson: o pai de família é um herói imerso na lógica de que a educação é a melhor arma contra a violência, o que é ótimo. Mesmo que ele volte a trabalhar como um vigilante, há a iniciativa de recuperação do criminoso e não meramente da punição - isso fica claro quando o herói encara o rapaz que ameaçou sua própria filha com uma arma e, mesmo assim, orienta o rapaz a não prejudicar a própria vida. Essa dinâmica não poderia ser diferente, na verdade. O pano de fundo da série é o racismo estrutural que segrega a comunidade negra, nega oportunidades e empurra seus membros para a criminalidade - há, ao que tudo indica, uma discussão mais profunda que a média sobre o que leva alguém a se tornar um bandido, passando longe da lógica maniqueísta de mocinhos e vilões.
Para um primeiro episódio, o saldo é positivo de modo geral. O drama do herói aposentado voltando à ativa é uma premissa concisa e coerente que tem potencial para se desenrolar de diferentes formas ao longo dos episódios, mas não é a única coisa na qual a série se apoia. Há a jornada de amadurecimento das filhas de Jefferson, há claramente um arco romântico mal resolvido com a ex-esposa Lynn (Christine Adams), há vilões trabalhando para alimentar um sistema nocivo para a comunidade do herói. Além disso, as atuações não decepcionam e os efeitos especiais evitam o exagero e, em função disso, convencem.
A cena do policial racista abrindo a série vai, portanto, além de ser só um catalisador do retorno de Jefferson Pierce ao uniforme de Raio Negro, servindo principalmente como pano de fundo de toda a motivação do herói na trama. O racismo é algo tratado em todos os níveis em Raio Negro: há o descaso das autoridades, há o comportamento violento da polícia, há a forma deturpada como negros são retratados na mídia, entre várias outras coisas. Curiosamente, o primeiro episódio não indica uma série que seja panfletária de forma óbvia: a atração é sobre um herói e seus dilemas pessoais. A questão é que em um programa cujo elenco é formado por vários atores e atrizes negros, o empoderamento dessa comunidade, que raramente é retratada de forma tão diversa, acaba sendo algo inevitável - ainda bem.
Raio Negro estreou nos EUA em 16 de janeiro e chegou ao Brasil uma semana depois, em 23 de janeiro. No Brasil, a Netflix divulga semanalmente novos episódios da série.