Apesar de saber que este ano não teríamos anúncios gigantescos, revelações de estúdios ou grandes astros pelo pavilhão, minha expectativa para a San Diego Comic-Con 2023, minha primeira, ainda era enorme. Afinal, ia cobrir meu primeiro evento internacional e realizar um sonho que começou quando me formei lá no final de 2016. E, de fato, saí satisfeito da maior parte dos painéis que assisti, emocionado só de estar sentado com tantas outras pessoas que respiram cultura pop em pleno Hall H. O que eu não esperava, na verdade, era me ver inspirado e extremamente tocado por um painel que, até semana retrasada, ninguém daria nada — tanto que foi colocado em uma das menores salas do San Diego Convention Center. Em AI in Entertainment, que aconteceu no sábado (22), membros do SAG-AFTRA (sindicato dos atores e artistas de rádio dos Estados Unidos) e da NAVA (associação nacional dos dubladores) discutiram o uso da inteligência artificial no entretenimento e como grandes corporações têm usado letras miúdas em contratos para manter profissionais recebendo valores baixíssimos por anos de trabalho.
“Existe uma cláusula no seu contrato, se você for dublador, que [os estúdios] são donos da sua voz por todo o universo e até o fim dos tempos”, revelou Ashly Burch, atriz de Mythic Quest e dubladora de Horizon: Zero Dawn. O documento ainda cita que esses estúdios podem usar as vozes de seus contratados para toda tecnologia “existente ou a ser desenvolvida”. “Eles estão se garantindo para o caso de abrirem um estúdio em Marte e quiserem usar sua voz em 3020. Isso faz parte desta cultura.”
A aplicação da inteligência artificial na dublagem — e na recriação de vozes de forma geral — já tem chegado a níveis impressionantes. Atualmente, qualquer usuário do Twitter pode usar um dos vários bots do site para artificialmente dublar em diferentes idiomas vídeos compartilhados na rede. Com esse acesso permanente a vozes dos atores contratados, as empresas podem, sem qualquer custo ou consentimento, inserir suas vozes em diferentes projetos.
“Não quero promover nenhuma empresa, mas preciso dizer que uma das companhias contra qual estamos protestando contou a história de uma pequena sereia e uma bruxa do mar que literalmente rouba a voz da pequena sereia”, lembrou Duncan Crabtree-Ireland, diretor nacional do SAG-AFTRA e negociador-chefe do sindicato. “Quando assistimos pela primeira vez, pensamos no quão horrível é essa bruxa roubar a voz de outra pessoa e usá-la como bem entende. É exatamente disso que estamos falando. É importante entender o que tudo isso significa para quem tem sua voz roubada.”
Como bem lembrado no painel, o abuso da inteligência artificial como forma de substituir trabalhadores não ameaça apenas profissionais renomados, mas também aqueles que buscam ingressar no mercado - e podem ver suas chances de conseguir papéis cada vez menores. “80% dos dubladores nos Estados Unidos não são representados por nenhum sindicato. Acho que as pessoas não percebem, mas dublagem não vale apenas para desenhos ou videogames (...) Ela engloba narrações, comerciais de rádio em cidades pequenas e lugares sem alcance sindical”, comentou Cissy Jones (A Casa Coruja), lembrando que a mesma situação vale para atores e roteiristas. “Então temos muitos artistas fora dos sindicatos, o que quer dizer que eles não têm nenhuma proteção.”
Jones e Burch lembraram ainda que, com o avanço da manipulação de vozes e atuações por inteligência artificial, pequenos trabalhos que lançam artistas podem muito bem deixar de existir, uma vez que se tornará muito mais fácil para uma empresa usar uma narração qualquer para criar infinitas outras. Recentemente, a Rolling Stone americana publicou uma reportagem que revelou que grandes estúdios, incluindo Disney, Lionsgate e Warner, têm pago salários baixos para figurantes terem modelos 3D de si mesmos feitos para serem usados repetidamente no fundo de diferentes filmes, tornando descartável um trabalho essencial para grande parte dos atores de Hollywood. Nesse contexto, os painelistas lembraram que a IA coloca em risco todo tipo de trabalho criativo, incluindo escrita e fotografia.
“Chame do que quiser: inteligência artificial, modelo algorítmico, ou software de plágio… Essa tecnologia vai ser disruptiva. E vamos precisar discuti-la sobre ela inteira, porque ela é boa, mas também pode ser ruim”, afirmou Zeke Alton, negociador do SAG-AFTRA. “O que realmente precisamos entender é (...) que as greves que estão acontecendo agora são os atores e os roteiristas que estão protestando e que a greve é para nós, mas também é para você, seja você um artista ou um advogado ou um contador, porque estamos falando de consentimento.”
“Se permitirmos que a tecnologia seja usada sem um consentimento ativo, você acaba com a forma com a qual as pessoas se tornam mestres de suas áreas”, seguiu o ator. “E quando você perceber que esses profissionais não existem mais, precisa começar tudo do zero.”
Desde que as greves de roteiristas e atores começaram, não tem sido raro ver comentários jocosos na internet a respeito da presença de milionários em protestos na frente de grandes estúdios. O que esses críticos ignoram, seja por desconhecimento ou por má vontade, é que o número de pessoas que chegam ao topo da profissão é mínimo. Usando um exemplo “mais brasileiro”, seria como usar Neymar ou Ronaldo e os contratos milionários que eles assinaram ao longo de suas carreiras para dizer que todo jogador de futebol se torna milionário com facilidade, quando a grande maioria mal consegue deixar times de divisões inferiores, onde trabalham em condições precárias.
Ao longo do painel, a proteção a quem não consegue nem ao menos se qualificar para um plano de saúde decente foi ponto recorrente, assim como a ameaça universal que a IA pode se tornar caso bilionários donos de grandes empresas queiram aplicá-la como forma de cortar seus próprios custos e aumentar seus lucros pessoais. A resistência dos estúdios em entender o lado do trabalhador se tornou uma possibilidade assustadora para artistas em Hollywood, mas deve ser discutida também por todes cujos trabalhos podem (pelo menos para aqueles que enxergam funcionários como números) ser substituídos por um software.
Apoio em massa do público de San Diego
A universalidade da preocupação não só com o uso desregulamentado da inteligência artificial, mas com a constante precarização de contratos de profissionais de todos os níveis claramente emocionou os presentes no painel e na SDCC como um todo. Durante todo o evento, era possível ver camisetas, cartazes e broches em apoio aos grevistas. Mesmo o rápido protesto que aconteceu na manhã de sexta-feira (21) viu cosplayers e outros visitantes se juntarem aos gritos de guerra do sindicato.
Por mais que celebre anualmente grandes astros e produções bilionárias, o público da SDCC teve a empatia de entender que os ídolos que fazem milhões por episódio de séries ou acumulam prêmios são a exceção da exceção e que grande parte dos grevistas vivem de salário em salário. Conforme dito várias vezes no painel, essa realidade é aplicável para todo e qualquer trabalhador, que vê seu ganha-pão ameaçado pela forma gananciosa com que CEOs e administradores enxergam no avanço tecnológico um lucro fácil na desvalorização de funcionários.
É óbvio que não faltaram pessoas decepcionadas com a ausência de astros no Hall H, mas essa frustração dos presentes resultou em uma onda de apoio público emocionante. A empatia demonstrada por cosplayers, painelistas, quadrinistas, jornalistas ou até mesmo visitantes mais casuais, reforça que, ainda que a comunidade nerd esteja longe de ser uma comunidade 100% unida ou livre de conflitos internos, ainda há a compreensão de que a luta por uma remuneração decente é justa e merecida - e não se limita às mansões impressionantes de Los Angeles.
Sim, a discussão de AI in Entertainment começou focada em uma ameaça específica a uma categoria seleta de profissionais. Mas sua discussão trouxe à tona o constante perigo de uma maior precarização da vida daqueles que não detém os meios de produção e, assim sendo, podem, de uma hora para a outra, ficar reféns dos caprichos e ganâncias de quem se importa apenas com números. E, pelo menos nessa SDCC, ficou claro que muita gente já entendeu que o que está em jogo é bem maior do que o atraso no lançamento de alguns filmes de herói.