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Pose | Nova produção de Ryan Murphy mergulha na Nova York dos anos 80 para reviver a cultura marginal das comunidades gays

Piloto mostra como a arte foi utilizada para unir os rejeitados pela família e sociedade

05.06.2018, às 14H48.
Atualizada em 07.06.2018, ÀS 09H00

No Brasil, a palavra "baile" tem uma conotação específica, geralmente atribuída a lugares onde as pessoas se reúnem para ouvir música. Já na Nova York dos anos 80, a palavra "baile" (ou ball) era um tipo de cultura visual, totalmente teleguiada pela comunidade LGBT.

FX/Divulgação

Os “bailes” eram eventos de horas, onde os participantes geralmente pertenciam a uma casa, sendo essa um grupo de pessoas que se uniam por afinidade - quase sempre depois de rejeitadas pelas próprias famílias - e eram lideradas por uma mãe, que era uma drag queen ou mesmo uma pessoa trans. A mãe ditava o nome da casa e todos os membros o adotavam como sobrenome. A cada baile as casas se enfrentavam com desfiles temáticos ou competições de dança.

Se Pose, nova produção de Ryan Murphy, tivesse surgido anos atrás, provavelmente exigiria muito contexto para ser plenamente identificável. O documentário Paris is Burning é a base soberana que serviu de inspiração para a dramaturgia. Contudo, qualquer fã de RuPaul’s Drag Race consegue reconhecer as gírias e as regras propostas pelo show.

O cenário artístico da comunidade gay da época era bastante marginalizado, sobretudo por conta das pressões sociais impostas pelo advento do HIV, mas influenciou nomes como Madonna - que eternizou o Vogue - e a própria RuPaul, que viveu de perto essa ebulição criativa. Essa marginalização impediu que aspectos legítimos dessa cultura chegassem até a superfície, mas com o sucesso que drag queens fazem hoje em dia, a produção de Pose encontrou um terreno confortável e garantido.

Murphy, que tem uma preocupação louvável com dramaturgias engajadas, preparou um enredo de superações que dificilmente não pega o espectador pelo pé. Na história, a Casa Abundance está vivendo um momento de ruptura: depois de descobrir que está infectada com o HIV, Blanca (MJ Rodriguez) decide desertar da casa que a acolhera no passado para montar sua própria família. Isso enfurece sua antiga mãe-drag, a poderosa Elektra Abundance (Dominique Jackson).

Grande parte da trama foca nessa rivalidade, mas duas outras subtramas se cruzam no caminho: a de Damon (Ryan Jamaal), um jovem expulso de casa por ser gay e bailarino; e a de Angel (Indya Moore), uma transexual que começa um relacionamento com Stan (Evan Peters), um executivo casado com a personagem de Kate Mara e empregado de um ávido James Van Der Beek.

Strike a Pose

FX/Divulgação

O longo episódio piloto da série tem a direção do próprio Murphy e, como sempre acontece, é tomada de visceralidade. A sequência inicial já antecipa a maneira apaixonada com a qual essa história será contada: a Casa Abundance invade um museu nova-iorquino e rouba figurinos que servirão para o baile temático da realeza. Todos são presos, mas ganham a noite. Esse tipo de mitologia cultural será o foco da dramaturgia, que também tem outra grande preocupação: revisitar a rejeição sofrida por gays e transexuais sem cair no lugar comum, uma vez que estamos num momento em que já há muitas produções abordando – e produções que já tinham abordado – essas mesmas questões.

O segredo para superar essas obviedades é o texto. Quando Blanca descobre o HIV e Damon é expulso de casa pelos pais homofóbicos, a rapidez das sequências revela a urgência de não masturbar o drama, sem ignorar, contudo, os aspectos humanos inerentes a esse tipo de experiência. O clichê é evitado pelo ritmo acelerado típico dos pilotos do criador.

É inevitável abordar essas questões, mas do mesmo jeito que os personagens tentarão superar as rejeições com arte, o roteiro superará a obrigação do drama com performances. Vez ou outra, a própria narrativa de superação provoca uma catarse involuntária e isso faz o programa crescer.

Não há dúvida nenhuma de que a decisão de ter muitos nomes transgêneros no elenco foi crucial para a atmosfera de verossimilhança. Angel, Blanca, Elektra transmitem compreensão dos personagens e se conectam à audiência da forma como isso precisa acontecer: debaixo das gírias, do glamour e do gongo, existem pessoas que foram abandonadas pela família e pela sociedade, unindo-se com a arte como tutora. O piloto não se priva de sublinhar a responsabilidade da engrenagem social na falta de oportunidades menos marginais para cada uma daquelas vidas. Os personagens se viram como podem, sem julgo, mas cheios de expectativas.

Enfim, ao longo dos mais de 70 minutos de duração, Pose retrata o universo dos bailes com um apuro irrepreensível. O clube onde eles acontecem, o narrador, as gírias, as roupas, o estabelecimento do vogue. A viagem no tempo é absoluta.

Ao final, quando a Casa Evangelista é estabelecida e o teste de Damon para uma escola de dança acontece ao som de uma saudosa Whitney Houston, já fica muito evidente que Pose será outra daquelas produções de Murphy que abusam da polidez e da sagacidade.

Fica ainda mais evidente que serão as relações interpessoais sem vínculos biológicos que perpetuarão um comovente e inesperado senso familiar. O acolhimento, a proteção, a força e o apoio que as famílias consanguíneas se recusam a prover aos seus, é dado de graça por completos estranhos que apenas compreendem o que é ser preterido. A série sabe como tornar críveis os sentimentos melancólicos construídos a partir disso - e o faz lindamente.

A Casa Murphy continua gabaritando nos bailes. Lidemos com isso, ainda bem.

Nos Estados Unidos, Pose é transmitida às segundas pelo FX. No Brasil ainda não há emissora ou estreia definidas para o seriado.

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