Séries e TV

Artigo

Ryan Murphy e a jornada que o levou a ser um dos produtores mais poderosos da TV americana

Como o criador de American Horror Story, Glee e Nip/Tuck deixou sua marca

09.09.2016, às 17H21.

Numa longa entrevista concedida à revista EW, Ryan Murphy foi indagado por um repórter sobre quem ele gostaria de ver em uma de suas séries. Ele contou uma história sobre ter sido presidente do fã-clube de Meryl Streep quando estava no colegial. Ainda que superficialmente, ele fez questão de frisar como aquilo era triste, antipopular e uma válvula de alimentação para seus grandes sonhos de um dia adentrar a indústria do entretenimento. Streep ainda não está em nenhuma de suas séries, mas o sucesso alcançado por Murphy sugere mais que impossibilidades.

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Sentado ao lado de Kathy Bates na entrevista em questão, Murphy faz parte de um seleto time de produtores executivos que são garantia de sucesso, mesmo que isso não represente audiência em primeiro lugar, mas sim apelo midiático. Como ele, talvez possamos eleger Shonda Rhimes e o respeito alcançado ao conseguir estrelas como Kerry Washington e Viola Davis para estar em suas produções. A comparação parte de uma premissa muito específica: Rhimes vende uma marca, assim como Murphy.

A questão é que a "marca Ryan Murphy" é uma das mais complexas que a televisão já viu e isso, sem dúvida, se refletiu em sua ascensão. Acusado de abraçar possibilidades demais em suas obras, o produtor também é um compêndio de abordagens polêmicas e provocativas, que vão desde as mazelas juvenis até o horror fantástico cheio de agressividade visual e erotismo. Como grande propulsor de cultura pop, Murphy é julgado com os mesmos ataques de superficialidade que essas manifestações artísticas invocam. Seu papel na televisão é petulante e maldito; sua obra é odiada e reverenciada; e não se pode, absolutamente, ser indiferente a ele.

POPular

Nip/Tuck

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O passado de rejeições e bullying vivido por Ryan Murphy acabou perseguindo-o em sua primeira incursão pelo mundo da televisão. Assim como Kevin Williamson fez de Dawson's Creek uma espécie de metalinguagem da própria adolescência, Murphy fez de Popular (1999) um programa exatamente sobre as dinâmicas sociais dentro da escola. O programa já chamava a atenção da crítica especializada, com uma linguagem textual irônica e doses cavalares de referências contemporâneas.

Murphy voltaria a essa premissa mais adiante, mas antes resolveu vender uma ousada ideia sobre uma clínica de cirurgias plásticas comandadas pelos cirurgiões mais amorais de toda a história da TV. Nip/Tuck (2003) era o primeiro sinal da forma pervertida e bizarra como funcionava a mente do roteirista. O sucesso de Família Soprano e sua dramaturgia chocante serviu para abrir portas dentro de redes que antes não se preocupavam muito com complexidade. Não demorou para o programa começar a angariar prêmios e colecionar participações estelares. O que Murphy oferecia era uma chance de flertar com uma linguagem visual poderosa e um texto completamente hedonista.

Em 2009 estreou Glee e foi então que o produtor se tornou verdadeiramente "popular". Antes mesmo do fim da primeira temporada, a série já tinha faturado os prêmios mais importantes e vendido um número impressionante de discos. As referências estavam embasando o trabalho de Murphy novamente, já que Glee levava o gênero musical para a televisão e polia a estética agressiva e debochada do texto que já tínhamos visto em Popular. A ansiedade profissional do roteirista, entretanto, também lançou um mito midiático para o mundo do entretenimento: por causa de Glee, Nip/Tuck viu-se afundando em seus dois últimos anos e esse processo se tornou um argumento - nem sempre justo - de todos os detratores que viam a maneira quase histérica com a qual Murphy conduzia seu trabalho.

Glee

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Um pouco antes de Glee, ele tentou emplacar um piloto intrigante para o canal FX. Pretty/Handsome falava sobre um homem de família que aos poucos decidia lidar com uma latente transexualidade. Provavelmente não era o momento certo, já que somente quase dez anos depois é que uma realidade como essa conseguiu ser abordada na TV, pelas mãos da premiada Transparent (2015). Mas, isso era um sinal claro de que sua mente criativa estava forçando abordagens a frente do tempo.

A linguagem por vezes sangrenta e erótica de Nip/Tuck antecipava um hit. American Horror Story dava duas tacadas de originalidade referencial de uma só vez. Revisitava o gênero do horror de uma forma elegante e esperta; e oferecia aos espectadores a possibilidade de acompanhar histórias fechadas por temporada, com um mesmo elenco, numa métrica antológica que agradava aos atores, aos produtores e ao público que ansiava cada vez mais por narrativas completas. Cinco temporadas depois, estrelas do calibre de Jessica Lange, Kathy Bates e Lady Gaga já passaram pelo programa. E atrizes como Sarah Paulson e Lily Rabe se tornaram imensas por causa dele.

American Horror Story

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As dificuldades em emplacar produtos como The New Normal (uma série sobre a própria vida dele) e Scream Queens estão sempre ligadas a uma rejeição direta ao jogo de alegorias que Murphy gosta tanto de usar. Realidades envolvidas de escárnio fantasioso, configurando uma linguagem de simbologias que muitas vezes se passa por superficial quando, na verdade, desvenda arquétipos e comportamentos através do que eles mesmos representam. Provavelmente por isso o sucesso do mais recente trabalho tenha sido tão avassalador. American Crime Story conta histórias reais e restringe a influência de Murphy.

Mais do que oferecer personagens ousados e corajosos aos que se interessam pelo seu trabalho, Murphy sempre agiu na mídia como alguém que entende os poderes e as maldições provocadas por ela. A cultura pop ajudou a fortalecer toda sua identidade, e por ter completa consciência disso, seu trabalho com as narrativas ficcionais sempre foi tomado de interesse pela disseminação de discussões importantes e apontamentos críticos. Murphy ressuscitou os musicais, o horror e as antologias. Fez os EUA reviverem a ambiguidade de seus costumes, promoveu um diálogo sobre bullyingnunca antes visto na sociedade americana e tentou falar de identidade de gênero quase dez anos antes que a TV tivesse coragem de falar.

"Ser parte de algo especial te torna especial"

Os caminhos que levam até a produção artística são constantemente estabelecidos pelas experiências do próprio roteirista. Não é incomum vermos cineastas contando histórias sobre como passagens da infância ou adolescência foram importantes para seus futuros profissionais. Esse é um traço natural da personalidade artística, que tende a absorver os detalhes do mundo como pontos de inspiração e também como um longo catálogo de histórias que podem ser acessadas a qualquer instante.

Ryan Murphy já deu várias entrevistas em que conta sobre todo o terror vivido no colégio e na própria casa, por conta de sua homossexualidade evidente. Essa solidão forçada lhe proporcionou um mergulho em todo tipo de manifestação artística acessível, com boas doses de subversão e luxúria, que lhe serviam também de escape para todas as suas indignações. Qualquer um dos trabalhos de Murphy é como uma enciclopédia de referências e citações. Crescer sendo inspirado pela dramaturgia lhe tornou um produtor dramatúrgico que incute gratidão como forma de reverência em tudo que faz.

As histórias que Murphy conta são sempre jornadas coletivas. Mesmo suas abordagens mais românticas são tomadas de certa acidez. Ele cresceu sendo influenciado por fórmulas, mas tem aquele prazer maledicente em transgredi-las. Seu histórico denuncia dificuldades em manter suas criações protegidas dele mesmo, na ânsia constante de fazer tudo, explorar tudo, experimentar qualquer virada. Murphy é um criativo descontrolado e muitas vezes as suas séries pagam o preço dessa compulsão. Ele quer dizer tudo, cavucar tudo, debochar de tudo... E como com todas as mentes produtivas demais, pode tropeçar no próprio orgulho e falhar.

É bem provável que Meryl Streep jamais protagonize alguma de suas produções, mas a "marca" que ele impõe é poderosa e suculenta para qualquer ator. A TV está cheia de dramas médicos, mas ele transformou o seu num suspense soft porn crítico e decadente. A TV está cheia de séries adolescentes, mas ele transformou a sua num musical sobre "perdedores" de língua afiada. A TV está cheia de séries fantasiosas, mas ele fez da sua o ícone de horror mais elegante já produzido na história americana. Ele está sempre denunciando o que lhe inspira, refazendo um caminho de redenção que pode conseguir fazer com que as melhores engrenagens criativas passem a girar, reforçando a mídia como produtora de sentido e resultando no verbo indispensável para todos os que compreendem a força da arte: inspirar.

American Crime Story

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