Nem sempre as coisas dão certo. Isso é algo que muitos candidatos do Processo, sistema apresentado em 3% através do qual um seleto grupo de jovens deixa a pobreza do Continente e vai para a beleza do Maralto, vão descobrir ao longo dos testes que enfrentam na série, a primeira produção brasileira da Netflix. Infelizmente, é algo que quem torce para a realização desta produção desde o lançamento do piloto no YouTube em 2011 também terá que compreender.
A ideia de 3%, ainda que um pouco atrasada - a era das distopias com divisão de classe na ficção já está passando - é fascinante. Todo ano, jovens que tem 20 anos de idade participam de um processo onde apenas 3% são selecionados para viver num paraíso avançado no meio do mar. Acompanhar os testes aplicados por Ezequiel (João Miguel) que decidem se Michele (Bianca Comparato), Fernando (Michel Gomes), Joana (Vaneza Oliveira), Rafael (Rodolfo Valente), Marco (Rafael Lozano) e tantos outros são dignos de uma vida melhor é divertido, e o formato Netflix de disponibilizar todos os episódios de uma vez beneficia a série, já que vai prender muitos espectadores até o final pela simples curiosidade de ver quem passa.
Mas há tantos erros na execução que é difícil não terminar os oito episódios da primeira temporada sem um coração quebrado. O roteiro funciona apenas no nível mais básico possível. A narrativa, que de fato levanta perguntas difíceis e trata de temas importantes, não é conduzida de forma inteligente e há enormes furos de lógica no enredo, que se mostra inconsistente tanto na apresentação da mitologia deste mundo quanto na construção dos personagens, que às vezes parecem mudar de personalidade. Basta pensar por cinco minutos que questionamentos sem respostas vão surgir, tirando qualquer tipo de imersão de que o que está acontecendo pode ser levado a sério.
Há diversas decisões, tanto na trama quanto nos personagens em si, que não fazem sentido quando analisadas a fundo. A forma como os funcionários do Maralto conduzem os testes não parece ter nenhuma lógica, e as escolhas que eles fazem para determinar se uma pessoa tem o mérito para viver no lado bom da vida raramente são consistentes com as filosofias e a suposta superioridade que "o lado de lá" tem.
O maior problema, entretanto, é na construção do mundo. Por mais que 3% esteja recheada de detalhes interessantes no figurino e mitologia do mundo em que se passa, a série nunca consegue sustentar a própria premissa. Sim, todo mundo fala que o Continente é terrível, que o Maralto é o ápice da qualidade da vida, mas em nenhum momento recebemos provas disso. Uma das regras mais antigas da construção de narrativas é que é sempre melhor mostrar, não falar.
Nós nunca recebemos informações concretas de como é o cotidiano dos jovens nos 20 anos antes do processo, o que os faz desejar tanto enfrentar estes testes. Da mesma forma, a adoração das pessoas pelo Maralto não faz muito sentido. As tecnologias que vemos os habitantes de lá usarem não parecem ser tão avançadas e a apresentação da sociedade de lá nunca é feita de uma maneira impressionante ou que justifique as lendas e rumores maravilhosos criados sobre como é viver daquele lado. Essencialmente, nós temos que acreditar no que Ezequiel e os outros responsáveis pelos testes falam, mas se nem alguns dos personagens acreditam, menos ainda os espectadores, que vêem todos os problemas jogados pra baixo do tapete pelos organizadores.
Com a quebra da premissa, restam os personagens. As motivações pessoais da maioria dos protagonistas faz sentido, mesmo que sendo um tanto óbvias, mas investir neles se torna uma grande dificuldade especialmente por conta da atuação. O elenco de 3% não consegue convencer sempre que uma cena demanda mais nuância emocional, ou quando um diálogo requer uma intensidade maior. É difícil conectar emocionalmente com alguém quando essas emoções não são demonstradas.
Isso não quer dizer que as atuações são sempre ruins. Bianca Comparato, Vaneza Oliveira, Michel Gomes e especialmente João Miguel, cujo personagem é o mais interessante da série, em grande parte pela atuação levemente desequilibrada mas em controle do ator, têm bons momentos, especialmente na reta final da temporada, mas o nível geral não é alto.
Ao fim de tudo, cada qualidade de 3% acaba sufocada por uma quantidade maior de defeitos. A série tem ótimas ideias, acompanhar os testes é interessante, e esse é um tipo de narrativa que funciona bem no esquema de maratonas da Netflix. Mas as inconsistências e furos do roteiro, a falta de construção do mundo e os problemas de atuação prejudicam demais o produto final, criando uma grande sensação de que esta foi uma oportunidade perdida.
Criado por: Pedro Aguilera
Duração: 4 temporadas