Dizer que “os humanos são os verdadeiros monstros” em A Criatura de Gyeongseong seria de um simplismo que não faz jus às profundidades históricas interrogadas pelo roteiro ousado de Kang Eun-kyung (Clima do Amor). É verdade que a série sul-coreana disponível na Netflix mostra homens monstruosos criando uma aberração da natureza que, no fim das contas, não é a verdadeira antagonista da história. Este é o chavão mais antigo do filme de monstro, mas Gyeongseong se mostra mesmo uma adição valiosa ao subgênero quando o utiliza para abrir as portas de uma história sobre as ramificações perversas, algumas óbvias e outras nem tanto, do colonialismo.
Ambientada na Joseon (atual Coreia do Sul) dos anos 1940, ainda sob o domínio japonês, A Criatura de Gyeongseong desenha os destinos cruzados de um rico comerciante (Park Seo-joon, que recentemente fez sua estreia em Hollywood com As Marvels) que construiu sua fortuna em colaboração tácita com o governo colonial e de uma pobre detetive (Han So-hee, estrela da excelente My Name) contratada para encontrar um pintor desaparecido. Os caminhos dos dois acabam levando-os, juntos, a um hospital onde os militares japoneses escondem experiências humanas hediondas, incluindo a criatura do título.
A premissa, embora travestida de fantasia, não passa longe da realidade: durante a ocupação japonesa da Coreia do Sul, muitos indivíduos nascidos no país foram capturados e utilizados como cobaias para experimentos científicos e testes de armas desenvolvidas pelo exército imperial japonês, em uma divisão conhecida como Unidade 731. A Criatura de Geyongseong coopta essa verdade histórica para construir sua linha narrativa principal, mas também demonstra eloquência tremenda ao pontuar sua dramaturgia com outros aspectos e reverberações da ocupação japonesa.
Um exemplo notável é a forma como a roteirista Kang lida com as relações de gênero em sua história. A prostituta Myeong-ja (Ji Woo) pode ser a reflexão mais direta do uso de sul-coreanas como “mulheres de conforto” para os soldados japoneses durante a 2ª Guerra Mundial, mas A Criatura de Gyeongseong entende que, dentro da arquitetura social em que estão inseridas, nenhuma de suas personagens femininas tem acesso a qualquer tipo de poder que não seja cedido, sempre com muitas amarras e condicionamentos, pelos homens que o possuem. De maneira cortante, a série retrata como esses homens “inventam” suas mulheres e as colocam em pedestais frágeis, prontos para transformá-los em celas assim que elas se mostrarem inconvenientes ou descartáveis.
É uma das muitas entrelinhas que Gyeongseong trabalha com potência dramática inegável, resgatando uma multidisciplinaridade narrativa que já foi marca indelével da boa televisão, mas anda meio perdida nessa época de séries “cinematográficas” até em seus focos dramáticos singulares, ao invés de plurais. Coloque nessa conta também: o arco de construção heróica do protagonista masculino, que passa do egoísmo necessário do sobrevivente para o altruísmo igualmente necessário do líder revolucionário; a ressignificação da lealdade dentro do contexto brutal de um governo que busca acima de tudo a desumanização de seus subjugados; as referências sutis à violência cultural e linguística que é pedra fundamental do colonialismo; e por aí vai.
Com um texto tão denso, é de se admirar que a série ainda encontre espaço para ser uma história de fantasia e terror envolvente dentro dos parâmetros desses gêneros. O grande aliado do roteiro neste caso é o diretor Jung Dong-yoon (Tudo Bem Não Ser Normal), que tira da cartola pelo menos uma sequência de suspense enervante por episódio, desfilando um domínio impecável de cenário e movimento. Com sua câmera segura e uma montagem que evitam o frenetismo, a série cria registros arrepiantes da criatura-título mesmo que o CGI usado para renderizá-la não seja tão convincente.
Curiosamente, essa elaboração visual compenetrada só vacila nos raros momentos em que A Criatura de Gyeongseong recorre à porradaria. Apelando para movimentos bruscos de câmera para tentar sublinhar o impacto dos golpes dados pelos atores, mas ao mesmo tempo disfarçar uma coreografia de luta pouco inventiva, a série não parece saber conciliar a sua seriedade dramatúrgica com o aspecto físico do gênero em que se meteu. E que pena, especialmente porque a estrela Han So-hee é uma das atrizes mais fisicamente impressionantes da sua geração.
Aqui, ela tem menos golpes a distribuir e sangue para derramar do que em My Name, mas a sua detetive ainda é atleticamente prodigiosa, e Han outra vez mostra saber como revelar as fragilidades de uma personagem casca-grossa sem diminuí-la - de fato, o seu choro convence, principalmente, porque o seu poder também convence. Ao lado dela, Park Seo-joon faz seu retorno triunfante aos k-dramas (é o primeiro que ele faz desde 2020) mostrando porque se tornou um nome tão dominante do gênero, empunhando o carisma de superastro como instrumento para desarmar os preconceitos que o espectador pode ter com o seu mauricinho colonial, e aproveitando os menores momentos para revelar a revolução íntima que empurra o personagem na direção de uma revolução política.
A Criatura de Gyeongseong obedece de bom grado a cartilha do folhetim, que dita a obrigatoriedade do romance entre seus protagonistas, mas é notável como Han e Park não borbulham em paixão na tela. Seu encontro de almas é mais gentil, mais circunstancial, do que pretensamente predestinado - aqui estão duas pessoas machucadas, em um mundo machucado, descobrindo que podem amenizar a dor um do outro. É um casal que talvez nunca acontecesse em circunstâncias diferentes, em um lugar e um tempo diferentes. Veja só que apropriado: só dessa vez, não é sobre química. É sobre história.
Criado por: Kang Eun-kyung