Better Call Saul celebra a narrativa longa e supera Breaking Bad

Créditos da imagem: AMC/Divulgação

Séries e TV

Crítica

Better Call Saul celebra a narrativa longa e supera Breaking Bad

Prelúdio derivado não recusa a chantagem emocional mas recompensa melhor o espectador atento

Omelete
6 min de leitura
16.08.2022, às 11H23.

Fica mais claro na sexta e última temporada de Better Call Saul que a vinheta dos créditos iniciais nunca foi a mesma ao longo da série; ela deprecia com o tempo, de uma fotografia granulada e saturada para os chuviscos irreconhecíveis de um VHS. Com isso, BCS demarca para o público que a coisa toda se trata de uma experiência sensorial e visual, assim como Breaking Bad. Ambas as séries não economizam no arrojo de câmera, seja na saturação, nos planos-detalhes extremos (as formigas no sorvete!) ou nos movimentos imprevisíveis da câmera presa a objetos como portas e cadeiras. Rodadas em locações no Estado americano do Novo México, as duas séries parecem OVNIs de hiper-realismo hoje numa Hollywood que filma tudo dentro de galpões forrados de telas de alta definição. 

Ainda assim, Better Call Saul se aproxima mais da literatura, especificamente do romance literário.

Quando a crítica passou a analisar o período da TV a cabo americana pós-Família Soprano como o “ápice da teledramaturgia”, muito se falou sobre as similaridades entre as séries longas, de seis a dez temporadas, e os romances. BCS é um dos últimos grandes exemplos desse movimento, hoje minado pelo interesse do streaming em narrativas mais curtas, de maratona ou segmentadas em antologia. Better Call Saul funciona bem demais com episódios semanais - um regime de lançamento que a Netflix teve que aceitar, já que a série passa primeiro na AMC dos EUA semanalmente - porque é formatada para a narrativa longa, construída no acúmulo. 

Provavelmente é a filiação com Breaking Bad que permite que BCS se dê ao luxo de se desenrolar pacientemente como os capítulos de um romance. Sem a necessidade de convencer novos espectadores - já fidelizados (ou alienados) pela dinâmica incessante de chantagens emocionais da série-mãe - BCS recosta na poltrona e conta sem pressa a pequena história de um caçula que buscou sem sucesso a aprovação de seu irmão mais velho e por isso nutriu uma vida de ressentimentos. Ainda que a narrativa paralela de Mike Ehrmantraut (Jonathan Banks) opere sob os mesmos temas de remorso, amor e ressentimento da história de Jimmy (Bob Odenkirk), ela existe essencialmente para fazer os serviços pontuais aos fãs: conectar-se aos vilões de Breaking Bad e ao mesmo tempo justificar BCS como uma trama de gangsterismo que não aparte o prelúdio/derivado da série original.

Na comparação, fica claro que Breaking Bad se organiza de forma muito mais improvisada e imediatista, queimando entregas emocionais antes da hora e tendo que lidar depois com o arrasto dessas entregas. Duas lições aprendidas em BCS: Kim (Rhea Seehorn) se desenvolve como coprotagonista e anti-heroína para não ser antagonizada pelo público como foi Skyler (Anna Gunn); e a morte violenta que engatilha arrependimentos e conclusões de arco em BCS só acontece no sétimo episódio da sexta temporada, ao contrário da morte de Jane (Krysten Ritter) em Breaking Bad, ocorrida no ano dois e que faz de Jesse (Aaron Paul) um zumbi de unidimensionalidade até o fim da série.

Better Call Saul também sabe jogar com a expectativa pela desgraça, mas convida o espectador ao prazer do sequestro emocional de forma mais recompensadora. A expectativa se sedimenta. Ao invés de atendê-la no show burlesco de Deus ex machinas que era Breaking Bad, BCS dilata situações e por vezes entrega conexões e easter eggs de si mesma com uma diferença de duas, três, quatro temporadas. Cabe só ao espectador relembrar a importância de objetos, como os bibelôs de cerâmica e a rolha da garrafa de tequila, ou de frases como aquela sobre lobos e cordeiros que Jimmy sussurra no carro com Kim no ano seis e que remete a uma cena de flashback da segunda temporada. Quando faz essas conexões, BCS não apenas mostra que seu roteiro é consistente e coeso - um processo laborioso que convida o público a confiar nas recompensas da narrativa longa -  mas também cria com o espectador um processo ativo de fruição que se aproxima muito de uma cumplicidade. 

A cena do sussurro no carro é emblemática; Jimmy fala dos lobos e cordeiros e o episódio poderia se encerrar aí mesmo, com essa citação espirituosa que sacramenta a “transformação” de Kim no impiedoso Jimmy e de Jimmy no seu misericordioso pai. Logo em seguida, porém, vemos outro carro e descobrimos que o casal está sendo seguido antes do episódio terminar; ou seja, o texto, o suspense da trama que avança, sempre vai ter prioridade sobre o subtexto. Better Call Saul pode se entregar aos caprichos que desejar da narrativa metafórica ou circular, mas em nenhum momento - nem na quarta temporada, que basicamente é uma história de coadjuvantes, de Kim e de Nacho (Michael Mando) - perde de vista que precisa atender aos gêneros que escolheu para si, a comédia e o suspense. O fato de o episódio final da série retornar como "agradecimento" ao drama-de-tribunal só confirma esse voto de fé na narrativa de gênero.

Assim como Breaking Bad, Better Call Saul também é um conto moral de anti-heróis que se pauta pelo crime>castigo>redenção, mas executa essa fórmula - que afinal já vinha consagrada no “ápice da TV” desde Família Soprano - de um jeito mais sofisticado. A série escolhe o fogo baixo, prescinde de uma sucessão aumentada de eventos e ameaças, com a crença de que esse prelúdio tem estofo para aguentar seis anos de estudo de personagem. Os “eventos” na história de Kim e Jimmy são essencialmente de ordem de caracterização, invertendo noções de vilania e boa vontade de forma surpreendente no meio do processo: um personagem pode ir do ponto A ao ponto B de forma que B inclusive anule e ressignifique o ponto A. Uma jornada de transformação total.

A transformação se consuma no episódio nove do ano seis, uma temporada transcorrida freneticamente num fôlego só porque afinal de contas BCS vinha cozinhando a expectativa dessa entrega por cinco temporadas. O salto temporal bem largo que ocorre no episódio, depois de Kim e Saul definirem sua relação, mostra como BCS pode ser calculista e precisa quando deve, e nunca apegada ou sentimentalista com aquilo que os criadores escrevem. O fato de os quatro episódios seguintes serem essencialmente encenados em preto-e-branco no tempo presente reforça-lhes o caráter de epílogo - outro expediente mais comum na literatura do que na televisão. 

O romance em prosa se consolidou como a principal forma de narrativa literária, em substituição da poesia e dos textos religiosos, na medida em que a burguesia ascendeu na Era Moderna, porque vinha atender a uma demanda por histórias dedicadas à vida, aos dramas e aos anseios do homem comum na urbanidade. Daí vem a famosa citação do crítico György Lukács (1885-1971) que diz que os romances são tradicionalmente longos porque eles precisam transmitir ao leitor uma sensação de vida vivida do início ao fim. É assim com Jimmy McGill. O finale fala de ressentimento e remorso e - como Better Call Saul sempre fez - sobe no púlpito do tribunal, diante do microfone, para fazer seu texto se amplificar. Nesse momento, a série não tem receio de transformar no texto essa ideia do remorso que em muitos momentos ficou no subtexto. Talvez o faça, enfim, por saber que o texto em si merece a tribuna por seu brilhantismo.

Nota do Crítico
Excelente!
Better Call Saul
Encerrada (2015-2022)
Better Call Saul
Encerrada (2015-2022)

Criado por: Vince Gilligan, Peter Gould

Duração: 6 temporadas

Onde assistir:
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