Os dez anos do incêndio na Boate Kiss, em Santa Maria, foram concluídos hoje, no dia 27 de Janeiro de 2023. Duas grandes plataformas decidiram levar ao catálogo produções que remetessem à tragédia. A Netflix optou por adaptar o livro Todo Dia A Mesma Noite, de Daniela Arbex; que tem um enfoque maior nas famílias das vítimas. O Globoplay decidiu ser mais jornalístico e produziu um documentário em episódios que mostrasse a ótica da informação, do registro histórico; sem esquecer que aquele era um episódio que vitimou 242 vidas jovens e que isso é, inevitavelmente, impossível de qualificar sem considerar as emoções.
Nem era necessário cavar qualquer relação emocional com o projeto, que já nasceu de uma ligação direta entre o cenário da tragédia e Marcelo Canellas, o repórter que sempre cobriu o incêndio desde aquele ano e que tinha em comum com os personagens do documentário a morada em Santa Maria. E é situando o espectador nessa relação pessoal com a cidade que Marcelo começa sua investida mais detalhada no caso. É incomum que vejamos jornalistas por esse viés tão íntimo, mas a Boate Kiss vitimou, também, o organismo da cidade, tornando-a um símbolo de luto e de luta, fragmentando sua reputação; o que fez com que ter um jornalista que viveu na cidade fizesse o documentário parecer ainda mais relevante.
Se no trabalho de adaptação da Netflix a dramatização proporciona um "embelezamento" dos eventos, esse não é o caso do que vemos em Boate Kiss: A Tragédia de Santa Maria. O documentário abre seu primeiro episódio com registros amadores, reais, do que aconteceu naquela noite. Apesar de evitar quadros muito gráficos do sofrimento de vítimas, a direção de Canellas exibe esses vídeos quase em totalidade, legendados, inclusive com constantes replays daquele que se tornou o mais famoso: o que mostra os primeiros minutos do incêndio, quando as pessoas passam da descrença para o pânico.
Essa dualidade dos minutos iniciais da produção está presente em todos os episódios. O espectador sai daquelas cenas terríveis na madrugada do dia 27 para a recapitulação histórica de Marcelo sobre sua cidade natal. E esse é o momento em que o documentário realmente cresce, não só nos detalhes quanto no trabalho de edição. O nascimento, a rotina da boate, a sua gênese... Marcelo produz com cuidado um mergulho nas instalações da Kiss, guiando o nosso olhar, garantindo que dali por diante todos terão condições de entender tudo que será mencionado nos episódios seguintes por testemunhas, vítimas e acusados. Esse é o ponto, inclusive, em que a dramatização de Todo Dia a Mesma Noite mais falha.
Nesse primeiro episódio do documentário conhecemos não só as instalações da boate com uma impressionante riqueza de detalhes, mas também somos apresentados aos sobreviventes que costurarão os episódios seguintes. São rostos que muitos dos que acompanharam as matérias sobre o caso já conhecem, mas que ganharam aqui uma vantagem descritiva importante: os vídeos dos depoimentos desses sobreviventes no julgamento foram usados no meio dessa costura "narrativa" e foi o julgamento, no fim das contas, a base principal para grande parte do trabalho de Canellas.
Luta (o)
Boa parte desses vídeos do julgamento dos acusados está disponível no YouTube, mas isso não esvazia o impacto de ver os depoimentos sendo entrecortados com declarações de outros envolvidos e, principalmente, dos pais que mergulharam ativamente na luta pela condenação dos que negligenciaram as vidas de seus filhos. A direção do documentário é muito densa quando entra na boate, no ginásio onde ficaram os corpos; quando passa frequentemente pela rua onde os destroços da Kiss estão até hoje... E, de certa forma, o competentíssimo trabalho jornalístico de Canellas e seus editores ficou desnivelado em relação ao longo tempo dedicado ao julgamento do caso (ainda que o julgamento tenha seu "vilão" evidente, tão odiável quanto os da ficção, na figura pateticamente teatralizada de um advogado). Em retrospectiva, chega a ser bizarro que tudo aquilo tenha sido anulado. O final do documentário deveria ser a condenação, mas nem as famílias e nem Marcelo esperavam pelo revés da anulação. Isso muda o tom, desfigura parte do processo.
Talvez em busca desse nivelamento essa edição às vezes soe um pouco desorganizada. No episódio 1 é natural que os editores apresentem todas as pontas que serão abordadas, mas tem tanta informação nessa primeira hora, que quando o ritmo se estabelece pelo que acontece no julgamento, é inevitável a sensação de que foi difícil para os editores criarem uma "narrativa" concisa dos acontecimentos. Sobreviventes, pais que seguem nos episódios seguintes, pais que não aparecem mais, relatos picotados entrecortados por diálogos resolutivos... Há sequências do episódio 1 que pareceriam melhor encaixadas no episódio 5 e apresentações de histórias em outros episódios que parecem encurtadas e ligeiramente confusas.
Mesmo assim, o documentário tem momentos impressionantes. A ponte entre os eventos da Kiss e outros incêndios em casas noturnas foi um grande acerto. Canellas busca imparcialidade e revela tensões entre sobreviventes, entre equipes de advogados, entre acusados... Podemos ver os fortíssimos depoimentos do julgamento no YouTube, mas no documentário estamos diante das reações a eles. É muito difícil não sentir um nó na garganta diante do longo e dolorido relato de Delvani a respeito daquela noite. O depoimento dele é, sem dúvida, o que melhor traduz o peso que cada um dos que viram tudo aquilo precisa carregar. E mesmo assim, Delvani ainda passa pela rua da boate em sua rotina... assim como outro sobrevivente mora ao lado do prédio... assim como cada um deles precisa conviver com as últimas fotos de amigos, irmãos e irmãs.
A respeito da minissérie da Netflix ou do documentário do Globoplay, há questões técnicas e narrativas que são questionáveis quando você se distancia. Contudo, é impossível exigir distanciamento diante do que aconteceu naquele lugar. O incêndio na Boate Kiss ocorreu por negligência, e embora Marcelo Canellas dê voz a quem negligenciou segurança, nada do que eles digam (por mais crível que seja o desespero) será eloquente o suficiente para eclipsar a grande verdade que se estabeleceu: a vida humana não foi a primeira coisa que passou pela cabeça dos réus. Eles não pensaram em matar, mas tampouco pensaram em proteger.
Duração: 1 temporada