Chucky está envelhecendo. A premissa, que movimenta a terceira temporada de Chucky, série estrelada pelo boneco assassino, é tão literal quanto metalinguística. Sim, o personagem está envelhecendo dentro da trama, por mais improvável que isso pareça - no universo de regras místicas pra lá de flexíveis criado por Don Mancini, Chucky perde a proteção da divindade vudu Damballa por causa de seu flerte relutante com rituais católicos no segundo ano da série, o que significa que seu corpinho de plástico eternamente jovem começa a deteriorar rapidamente. Mas Mancini sabe também que Chucky está envelhecendo como artefato cultural, e que (36 anos, sete filmes e três temporadas de TV depois) a franquia está atingindo aquele estágio crítico de saturação.
É um dilema curioso para um autor como Mancini, que costuma prosperar quando se posiciona bem na beirada do mainstream, conversando com um público convertido, que se delicia com a forma como ele usa códigos de gênero até um pouco datados para construir um texto subversivo, cheio de ideias empoderadoras enfiadas nas entrelinhas da perversidade dos personagens. Quem é Chucky, então, se Chucky for só parte de mais uma “franquia interminável” de Hollywood? A terceira temporada da série parece lutar o tempo todo com essa questão, e passa perto de escorregar para a hipocrisia familiar e cansativa das outras “histórias sem fim” da cultura pop americana, flertando provocativamente com a perspectiva de desfechos que sabe muito bem ser incapaz de abraçar.
Mas Chucky é mais esperta do que isso, é claro. Já nas temporadas anteriores da série, Mancini e seu time criativo demonstraram entender que a eterna reencarnação do boneco serial killer é uma de suas forças narrativas, e não uma de suas fraquezas. Uma franquia slasher precisa manter o seu assassino vivo no final, obviamente, mas são poucas as histórias de horror de maníacos que entendem o potencial temático dessa qualidade perene de seus vilões. Em Chucky, o ponto todo da história está no trauma repetido que o boneco inflige em suas vítimas, na forma como elas acabam precisando organizar suas vidas e suas comunidades em função de um inimigo em comum, e nessa ânsia de sobrevivência acabam encontrando a aceitação e o afeto daqueles dispostos a lutar ao seu lado.
Aqui no terceiro ano, enquanto brinca com a possibilidade de cortar definitivamente a imortalidade de seu algoz, Mancini está brincando também com instintos opostos do seu público: o de querer que os heróis triunfem no final, até pelo afeto que se construiu por eles durante três temporadas de televisão; e o de querer que a história não acabe, mesmo sabendo que para isso o desfile de trauma e carnificina precise continuar. Segura no suspense compulsivo causado por esse conflito emocional, a terceira temporada de Chucky aproveita para fazer do seu sádico assassino imortal um avatar perfeito para o espírito das instituições americanas. Afinal, desta vez Chucky está na Casa Branca.
O boneco se infiltra na sede do Executivo dos EUA como parte do seu plano para driblar a mortalidade, mas isso pouco importa para além da piadinha esperta sobre a Casa Branca ser “o prédio mais maligno do mundo”. A ideia aqui, na verdade, é fazer do ciclo vicioso da narrativa da franquia (Chucky infiltra uma locação, causa um banho de sangue, destruindo uma ou múltiplas famílias no processo, é eventualmente derrotado, mas sobrevive em alguma outra forma para começar tudo de novo) um comentário sobre o ciclo vicioso da vida política nos EUA, seja pelo impulso bélico desenfreado que perpassa a história do país ou pelo pêndulo quase cronometrado da democracia americana, perpetuamente oscilando entre conservadorismo e liberalismo - movimentos marcantemente violentos, ainda que de formas diferentes.
Daí até o fato de a terceira temporada ser mais caridosa com suas figuras paternas e maternas do que as anteriores. Chucky precisa que o seu vilão se coloque como entrave em uma família razoavelmente funcional (ainda que devidamente neurótica) para que o paralelo político ressoe melhor. Por sorte, Devon Sawa e Lara Jean Chorostecki se mostram surpreendentemente envolventes como o presidente James Collins e sua primeira-dama, Charlotte - se nas caricaturas de desajuste adulto que faziam em episódios passados eles eram só distrações para a diversão da série, aqui se transformam no coração da trama, um casal de dinâmicas convincentemente distorcidas pelo luto e pela responsabilidade parental, mas cuja cumplicidade e afeto nunca são questionadas.
Que eles tenham a oportunidade de ser tudo isso é um testamento à mudança de foco da série: antes, Chucky mirava no inferno manufaturado no mundo pelas pessoas; agora, ela mira no sistema que tenta coagi-las a criar esses infernos. É uma cadeia de causa e efeito que é forte justamente porque se retroalimenta, porque - não importa quantas vezes tentemos matá-lo - esse mal infeccioso está entrelaçado em nossa própria organização social. Chucky sempre esteve, está e estará ali, à espreita, uma erva daninha cujas raízes estão enterradas demais para serem extirpadas de vez. Sempre genioso, Mancini escolhe manifestar esse mal tanto no plástico imperturbado do brinquedo assassino clássico quanto na carranca enrugada de Brad Dourif, que reaparece em carne e osso (e excelência dramática) quando Chucky vai parar no reino dos espíritos.
E nós, quem somos nessa brincadeira? Bom, nós somos Fiona Dourif, cuja Nica em certo ponto da temporada é obrigada a se arrastar pelo chão para perseguir Tiffany (Jennifer Tilly) enquanto ela tenta fugir da prisão. Como ela, estamos todos nas últimas, sofrendo, lívidos, tentando emprestar dignidade e ternura a uma situação indigna e dura. E fazemos tudo com gosto, com faro para o drama, desesperadamente buscando alguém para igualar nossa energia em cena. Fazemos, enfim, como se estivéssemos amando cada segundo - vai saber realmente por que, mas quem sabe um pouco em desafio àqueles que gostariam muito que não amássemos absolutamente nada.
Criado por: Don Mancini
Duração: 3 temporadas