Cena de Cidade de Deus: O Tempo Não Para (Reprodução)

Créditos da imagem: Cena de Cidade de Deus: O Tempo Não Para (Reprodução)

Séries e TV

Crítica

Cidade de Deus: A Luta Não Para acerta ao remodelar clássico para formato da TV

Aly Muritiba identifica bem oportunidades que nova série apresenta para legado do longa

Omelete
4 min de leitura
29.09.2024, às 22H00.

Cidade de Deus: A Luta Não Para é uma série de TV. Parece o cúmulo do óbvio dizer isso, mas também é importante que a informação entre na cabeça dos espectadores mais zelosos com o legado que a produção da HBO representa - ela é, afinal, a continuação tardia (essencialmente, uma legacy sequel, como está na moda em Hollywood) de um dos maiores clássicos da cinematografia brasileira. Ainda por cima, é um clássico com um rastro cultural complexo de estigmatização, ideação e representação de uma marca da desigualdade social que é intrínseca à cultura brasileira, embora não única a ela: a favela, em tudo o que ela evoca no imaginário popular, na história de nossas grandes metrópoles, no conceito de país que construímos no último século - senão nos últimos 500 anos.

Nesse contexto, A Luta Não Para chegou à TV com um peso enorme nos ombros, e uma vontade ainda maior de despachá-lo o quanto antes. Por isso que, logo nas primeiras cenas do primeiro episódio da série, o diretor geral Aly Muritiba resgata a linguagem e as referências imagéticas mais importantes do filme de Fernando Meirelles e Kátia Lund, prestando homenagem a elas em alguns cortes rápidos só para mergulhar em seu próprio universo - um universo que, muito espertamente, o cineasta identificou que fazia muito mais sentido para o formato em que sua história seria contada. Porque A Luta Não Para, eu repito, é uma série de TV. E séries de TV funcionam de maneira bem diferente de longas-metragens.

O trunfo essencial de A Luta Não Para é sua clareza de visão sobre esse contraste, sua minúcia em se aproveitar dele para desenvolver aquilo que Meirelles e cia. não tiveram chance de fazer em um filme cuja preocupação historiográfica e estética era muito maior do que sua ânsia de ser atual, corrente. A Luta Não Para é, acima de tudo, atual e corrente - o grupo de roteiristas responsável pela série, um quinteto formado por Sérgio Machado, Armando Praça, Renata Di Carmo, Estevão Ribeiro e Rodrigo Felha, sabe se aproximar do melhor da linguagem folhetinesca que define a TV brasileira, entendendo o quanto a nossa tradição de dramaturgia abre espaço para atacar temas e emoções que ainda estão à flor da pele, que ainda nos afligem aqui, deste lado da tela.

Em seus melhores momentos, portanto, essa primeira temporada da nova Cidade de Deus é um melodrama contemporâneo com ideias intrincadas para expressar sobre os lugares e personagens muito reais que retrata - e, nesse território, ela vai muito mais fundo do que o filme original parecia interessado em ir. Enquanto o longa, por exemplo, tocava com algum cinismo denunciante o papel dos poderes políticos institucionais na opressão da favela, a série traz de volta a figura corrupta do policial Cabeção (Kiko Marques) e o coloca na posição de secretário de segurança pública do estado, articulando a partir dele a rede de “vilões” da trama, e assim desvelando a pobreza e a violência como um projeto de precarização do qual os poderosos extraem votos, lucros e perpetuação do próprio poder.

A Luta Não Para também aproveita o formato televisivo para dar mais importância e agência aos personagens que se viam vítimas das circunstâncias no Cidade de Deus original. Daí surgem oportunidades dramáticas de destaque, como aquelas aproveitadas por Roberta Rodrigues e Andreia Horta, que crescem Berenice e Jerusa durante a temporada - mas, especialmente, na segunda metade dela - e encontram alguma aura de protagonismo no episódio final, indicando um caminho possível e empolgante para o segundo ano. Que a série demorasse um pouco para chegar nesse lugar em que pode começar a desenhar histórias mais independentes do filme original já era de se esperar, e o resultado impactante dos últimos capítulos da temporada mostram que construir cadenciadamente as personagens que podem carregar a trama nessa direção foi uma decisão acertada.

Lá pelo miolo de seus seis episódios, é verdade, A Luta Não Para parece perder um pouco do foco narrativo que estabelece com tanta contundência no início e retoma no final, mas as idas e vindas meio errantes da trama nesse período parecem um preço modesto a pagar para as recompensas que vêm depois dele. Consciente da história que quer e pode contar melhor ou diferente do filme que a original, e decisiva ao expor o universo estético e narrativo no qual quer e precisa transitar, essa extensão de franquia com ares de correção de curso e choque de modernidade mostra que o tempero brasileiro talvez fosse o que estava faltando para a tal moda da legacy sequel ganhar algum propósito.

Nota do Crítico
Ótimo
Cidade de Deus: A Luta Não Para
Em andamento (2024- )
Cidade de Deus: A Luta Não Para
Em andamento (2024- )

Criado por: Sérgio Machado, Armando Praça, Renata Di Carmo, Estevão Ribeiro, Rodrigo Felha

Duração: 1 temporada

Onde assistir:
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