Muito antes dos dias de hoje, George Romero já falava sobre a fascinação do ser humano pelo espetáculo da violência. O torture porn nem mesmo tinha esse nome. Chamado de cinema splatter (ou gore), ele começou como apenas uma representação gráfica da violência com que as vítimas eram dilaceradas, não necessariamente por alguma razão justificada, mas pelo prazer da perversidade. Os zumbis de Romero e seu apetite incontrolável por carne humana, pintavam o cenário perfeito para garantir aos espectadores alguns engulhos durante a exibição das películas. Contudo, as fronteiras entre slasher (sub-gênero com assassinos mascarados) e splatter eram tênues, já que o resultado final – pessoas evisceradas – era sempre o mesmo.
Em 2004 o diretor James Wan sofisticou o tema com seu Jogos Mortais. A ordem ainda era a de mostrar pessoas sendo destrinchadas, mas havia algo especialmente pérfido na forma como a história foi montada. Na trama, pessoas que não valorizavam a vida ou a desperdiçavam com falta de caráter, eram confinadas e desafiadas a um jogo: preso a alguma geringonça, você tinha a opção de se salvar, desde que matasse com requintes de crueldade alguma outra pessoa ou promovesse em si mesmo algum tipo de mutilação. A ideia era acordar no confinado o anseio pela sobrevivência e aproveitar a violência para discutir culpabilidade.
Round 6, nova produção sul-coreana da Netflix, se apoia em bases muito parecidas com as de James Wan, mas consegue construir sua própria identidade a partir de diferenças que só aumentam o senso de crueldade da história. Enquanto na trama de Jogos Mortais as pessoas não tinham escolha e eram obrigadas a entrar no jogo, em Round 6 sempre há uma saída, embora não seja com surpresa que encaramos a disponibilidade do indivíduo para jogar com os limítrofes da morte, desde que escapando dela, você ganhe alguma coisa com isso. E que vetor mais poderoso poderia haver além do dinheiro?
O diretor de Round 6, Hwang Dong-Hyuk, teve a ideia para a série quando ele mesmo passou por muitas dificuldades financeiras. Assim nasceu a história de Gi-hun (Jung-Jae Lee), um loser de carteirinha, que fracassou em todos os negócios que tentou, perdeu casamento, voltou a morar com a mãe e ainda tem um fraco por apostas. Ele é o candidato perfeito para um estranho tipo de recrutamento de uma empresa que oferece a solução para todos os seus problemas financeiros, desde que você tope participar de um jogo do qual não sabe absolutamente nada a respeito.
Mais de 400 pessoas são reunidas numa ilha deserta e assinam suas autorizações sem saber qual será o primeiro jogo. Quando a brincadeira de “Batatinha frita 1, 2 ,3...” termina com metade dos jogadores mortos, a trama revela sua reviravolta mais inusitada: não é só o fato de que as pessoas “eliminadas” são, na verdade, assassinadas, mas também a de que mesmo sabendo disso, metade dos sobreviventes aceita seguir no jogo. De forma inteligente, o roteiro solta os personagens no mundo exterior por algumas horas depois que eles sobrevivem ao primeiro massacre, apenas para provar que a vida moderna e a suas pressões podem parecer muito piores que entrar num jogo mortal. E você entende, você acredita, o que só reforça o poder que a história de Round 6 tem logo em seus primeiros momentos.
Carniças
Os 9 episódios dessa primeira temporada da série se arrumam em torno dos 6 jogos a que o título se refere. Acabamos sendo levados até parte da mitologia de Jogos Vorazes, já que é evidente que cada jogo e cada morte está sendo acompanhada, registrada e transmitida. O “torneio” dessa vez tem como “tema” o universo das brincadeiras infantis, deixando tudo ainda mais enervante. Imaginem se no clássico “cabo-de-guerra”, o time que perdesse caísse num abismo? E se na “amarelinha” o pulo na casa errada te levasse a um mergulho mortal? Cada etapa tem seu requinte de crueldade, suas regras e – é claro – seu “macete”. Como em todo jogo, é possível vencer se o jogador conhecer aquele simples “detalhe”.
Entre os jogos, os roteiros vão organizando seus personagens dentro de modelos clássicos do gênero: o heroi que se redime, o vilão desalmado, o quietinho que se corrompe, o jogador sem potencial para vencer que vai longe, e por aí vai... Mas, apesar de todos os personagens estarem encaixados em impressões recorrentes, nenhum deles é desperdiçado ou negligenciado. Todos encontram seus momentos de enfoque, são poupados ou sacrificados nas horas certas e oscilam entre nos conquistar com carisma e nos enojar com seus quilos de primitivismo.
Cada novo jogo é uma catarse. A direção de arte da série é impecável, com cada um dos eventos principais situados em contextos pseudo-infantis que conseguem ser nostálgicos e assustadores ao mesmo tempo. Os episódios alternam desafios de resultados violentos rápidos com desafios que torturam seus jogadores com o extremo da simplicidade; como no impressionante episódio em que eles ocupam as ruas de uma pequena vila fictícia para jogarem bolas-de-gude. Eles podem jogar como quiserem, desde que haja um vencedor. O perdedor leva um tiro, à queima-roupa. Então, por longos 30 minutos e divididos em duplas, os jogadores sabem que alguém precisa vencer para o outro morrer. É angustiante, fascinante e revelador.
Infelizmente, ainda há arestas soltas. Todo o arco envolvendo o policial infiltrado acabou se revelando deslocado, justamente por não afetar direta ou indiretamente o andamento da trama principal. Quando chegamos até o episódio final, toda a ansiedade para descobrir como terminam os jogos deixa qualquer outro aspecto da narrativa em segundo plano. As transformações até ali, as perdas, os enganos... Existe algo de perturbador até na maneira como nos comportamos enquanto espectadores. O horror da morte pouco a pouco vai dando lugar às nossas apostas pessoais. Nos pegamos torcendo para que nossos favoritos subjuguem os rivais, que passamos – tal qual os donos do jogo – a ver como simples números.
É cedo para dizer se Round 6 vai acabar perdida no miolo das próprias sequências (como aconteceu com Jogos Mortais), mas já é possível dizer com plena segurança que o trabalho da série é quase impecável. O horror, o gore, o torture porn, está tudo ali na lista de ingredientes necessários para o sucesso de um produto do gênero. Mas, poderosa mesmo é a forma como a mira se volta para nossa própria direção. Quem eu seria nesse jogo? Eu seria aquele que perdura porque entende que a morte é regra do jogo ou eu seria mais um na estatística do fracasso? É justo colocar as coisas nesses termos? Mas, não foi a engrenagem implacável da vida em sociedade que estabeleceu que termos eram esses? Eu giraria a roda ou eu seria descartável, uma sobra, uma carniça?
Round 6 está disponivel na Netflix e em pouco tempo já conquistou as primeiras posições entre os mais vistos. O negócio da dor rende e prospera. Ao menos aqui, ela tem substância e arte.
Duração: 1 temporada