Andrew Garfield em Em Nome do Céu

Créditos da imagem: Em Nome do Céu/FX/Reprodução

Séries e TV

Crítica

Andrew Garfield ampara conflito moral rico, mas mal trabalhado de Em Nome do Céu

Ator adiciona nuance às dúvidas do protagonista, mas falta à série a mesma destreza na construção do seu mistério

Omelete
5 min de leitura
11.08.2022, às 17H09.
Atualizada em 11.08.2022, ÀS 18H53

A notícia de um duplo assassinato que vitimou uma mãe e seu bebê de 15 meses só poderia ser recebida com choque, sobretudo em um subúrbio americano pacato, no Estado de Utah. Mas, por mais cruéis que sejam os detalhes de tal crime, nada soa mais assustador aos cidadãos do que a simples ideia de que um membro daquela comunidade, e não um forasteiro, foi o autor de tamanha atrocidade. Entre tantos homens e mulheres de fé, devotos dos dogmas de Joseph Smith e da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, aceitar que há ali um criminoso parece absurdo. Imagine, então, conceber que uma interpretação extremista dos valores mórmons motivou aquela barbárie.

Na minissérie de true crime Em Nome do Céu (Under the Banner of Heaven), esse conflito moral é tão central que se sobrepõe ao mistério típico dos whodunits. É contraintuitivo, mas não se trata de quem matou, e sim por quê. Nesse sentido, a investigação é menos forense, e mais semântica, analisando em última instância o que é fé e o que é a boa e velha manutenção de poder. É um debate delicado e que, por isso, facilmente poderia afastar o espectador, seja por ele ser fiel, seja por desconhecer os pormenores da religião. Espertamente, porém, o criador Dustin Lance Black contorna essa possível resistência dando um passo além do livro de Jon Krakauer que adaptou para a TV. Aqui, ele personifica todas estas questões na figura do detetive Pyre (Andrew Garfield), um mórmon fiel — e fictício — que, incumbido de investigar o caso, se vê questionando suas próprias crenças.

A fé do detetive Pyre é seu trunfo e sua maldição: ao mesmo tempo que lhe é útil para achar a melhor maneira de conseguir a colaboração dos seus suspeitos, é também a razão de todo seu desconforto. Afinal, ele foi ensinado a deixar todas as suas dúvidas na prateleira e a responder primeiro às leis de Deus, e depois às dos homens, ou seja, dois comportamentos diametralmente contrários à sua profissão. Tratando-se de um personagem criado para a série, é bastante claro que ele é uma versão potencializada do incômodo gerado pelo caso. No entanto, a sensibilidade com a qual ele foi escrito e levado à tela denota que há mais em Pyre do que uma metáfora. Ele é também o próprio Black.

Como alguém que cresceu em um lar mórmon e viu com os próprios olhos a Igreja não só não prestar apoio, como ainda culpar sua mãe pela violência da qual foi vítima, é bastante palpável a conexão emocional do criador com este caso. Ele viveu na pele como a devoção a Deus pode ser usada como escudo para proteger poderosos e instituições. Logo, em Em Nome do Céu, Pyre funciona como o veículo de Black para propor a discussão que ele mesmo só fez com profundidade anos depois da decepção inicial, quando descobriu a obra de Krakauer. Ainda que bastante pessoal, porém, seu texto é doce e ponderado, sem vilanizar a religião, e sim a desumanização dos seus valores. Com sua já característica vulnerabilidade, Garfield é quem ampara a dualidade da proposta do autor. Com um desviar de olhar ou uma lágrima sutil que não cai, ele dá a dimensão da dor interna do seu personagem sem precisar dizer uma palavra.

É um processo até que o detetive veja com algum ceticismo o discurso repetido à exaustão por líderes religiosos, membros da comunidade e, eventualmente, até pela sua família. Diante disso, seu parceiro de caso, o detetive Taba (Gil Birmingham), serve como uma âncora para lembrá-lo da relevância do seu papel, inclusive como um homem de fé. Essa dinâmica é um tanto inesperada, considerando que o devoto vê o colega primeiro com desconfiança — afinal, Taba não apenas veio de Las Vegas, como é declaradamente ateu. Mas, entre faíscas e viradas de olho, os dois criam um laço fraternal divertido, que não apenas entretém o público com momentos aparentemente banais, como quando compartilham uma batata frita na surdina, como distanciam a história de interpretações simplistas.

É uma pena, portanto, que a cadência e o cuidado na transformação gradual de Pyre não tenham sido aplicados na construção do arco dos criminosos. Com exceção de Wyatt Russell, que mais uma vez sabe aproveitar cada segundo do personagem odiável que tem em mãos, o extremismo da até então respeitada família Lafferty, os responsáveis pelos assassinatos, é repentino. Eles vão de cidadãos modelo, dentro e fora do lar, para explosões de raiva, olhares ensandecidos e gritaria. Veja, que fique claro: não é sobre a diferença de como eles agem em público e no privado, mas de como eles são caracterizados. Por exemplo, por mais confortável que estivesse com os valores patriarcais da família, o mais velho dos irmãos, Ron Lafferty (Sam Worthington), adota um comportamento errático depois de uma conversa que, até ali, tínhamos tudo para acreditar que não teria efeito algum sobre ele. O que mudou? Por que só agora esse malabarismo retórico torto funcionou? Não fica claro.

Mesmo assim, Em Nome do Céu não economiza tempo para abordar sua radicalização. Adicionando mais uma linha temporal a uma trama já bastante densa, a série segue os moldes da obra original e estabelece paralelos entre a origem da religião Mórmon e os assassinatos. Conceitualmente, é uma sacada perspicaz, já que não apenas dá conta de situar o espectador menos familiarizado sobre as especificidades desta comunidade, como frisa como certos hábitos nocivos sobrevivem ao tempo. Nesse sentido, é como se a minissérie estivesse alertando para o que viria a acontecer nos EUA meses depois do seu lançamento: uma interpretação datada e propositalmente turva sendo usada para justificar o cerceamento de direitos das mulheres — no caso de 2022, a revogação do direito ao aborto.

Entretanto, a proposta funciona de fato só até certo ponto. Com uma qualidade de produção nitidamente inferior, a dramatização de eventos históricos aos poucos se torna cansativa e repetitiva, e perde seu propósito. No fundo, não é preciso ir tão longe para entender a razão para que aquela mulher e sua filha tenham virado vítimas, muito menos por que os Laffertys foram capazes de tamanha brutalidade. São questões que ultrapassam essa ou aquela crença e, portanto, dispensam tanto didatismo. Infelizmente, mais do que deixar o caminhar da trama mais lento, Em Nome do Céu sacrifica ainda a relevância da sua vítima e seu papel, saudável e essencial, dentro daquela comunidade. Uma pena, porque Daisy Edgar-Jones faz um ótimo trabalho.

Entre acertos e deslizes, o saldo é positivo. Em Nome do Céu entrega uma experiência complexa e sensível, que te deixa pensando muito depois da série acabar.

Nota do Crítico
Bom
Em Nome do Céu
Encerrada (2022-2022)
Em Nome do Céu
Encerrada (2022-2022)

Criado por: Dustin Lance Black

Duração: 1 temporada

Onde assistir:
Oferecido por

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