Cena da primeira temporada de Entrevista Com o Vampiro (Reprodução)

Créditos da imagem: Cena da primeira temporada de Entrevista Com o Vampiro (Reprodução)

Séries e TV

Crítica

Entrevista Com o Vampiro honra sensualidade de Anne Rice sem negar sua violência

Chave da nova adaptação está em traduzir entrelaço perturbado desses dois elementos

Omelete
4 min de leitura
29.05.2024, às 06H00.

Em seus quase 40 anos de carreira literária, Anne Rice publicou livros sobre vampiros, bruxas, lobisomens, múmias, fantasmas, anjos caídos, Jesus Cristo e… bom, naturalmente, uma versão erótica da Bela Adormecida. São quatro os volumes desta história em particular, que mostra a princesa dos contos de fadas se transformando em escrava sexual de um reino de fantasia inspirado em tempos medievais, uma narrativa que escancara a fascinação de Rice com a bissexualidade e o sadomasoquismo, além de tentar a mão em alguns fetiches mais - digamos - exóticos (vide a cena em que Bela e outro escravo sexual se vestem de pônei para “satisfazer” seus mestres).

Essa exploração destemida das entrelinhas carnais das narrativas que definem a cultura pop há séculos é um lado da bibliografia de Rice que nunca foi realmente absorvido por Hollywood, apesar das várias adaptações de suas obras para o cinema e a TV. Não é uma surpresa: difícil imaginar o cinemão americano abrindo a porta tão descaradamente para um texto de diversidade sexual tão despudorado, que mistura com tanto entusiasmo o prazer e a violência em sua receita gótica. Sexo como perturbação, tanto quanto como liberação. Arriscado demais para Hollywood, mas a nova série de Entrevista Com o Vampiro gosta de brincar com o perigo.

A produção conduzida pelo showrunner Rolin Jones (Perry Mason) reimagina um pouco a história que os fãs já conhecem do livro de Rice e do filme de 1994, estrelado por Tom Cruise e Brad Pitt. Aqui, o vampiro Louis du Lac (Jacob Anderson) conta ao veterano repórter Daniel Molloy (Eric Bogosian) a sua história de vida, começando na Louisiana do início do século XX, quando ele conhece o sedutor Lestat de Lioncourt (Sam Reid), responsável por transformá-lo em uma criatura da noite. Juntos, eles dominam aos poucos a vida noturna de Nova Orleans e até adotam uma vampira mirim, Claudia (Bailey Bass), mas a relação é marcada por violentos conflitos - de natureza física e filosófica.

Nas mãos de Jones, a história de amor e ódio entre Louis e Lestat perpassa um leque amplo de dilemas socioeconômicos, impulsos sentimentais e chavões narrativos sem sentir a necessidade de aparar suas arestas menos delicadas. A escalação de Anderson como Louis, por exemplo, dá à ambição do personagem uma dimensão de revanchismo antirracista que não existia (é claro) no Louis de Brad Pitt, permitindo ainda que a série não se passe por ignorante diante da realidade étnica e culturalmente diversa da amada Nova Orleans de Rice. É nesse espírito não de correção, mas de adição ao cânone de complexidades humanas que fazem dos vampiros da autora criaturas tão fascinantes, que a série encontra seu equilíbrio como adaptação e como narrativa própria.

Daí também que, logicamente, o romance entre os dois protagonistas surja aqui em termos muito mais explícitos do que no filme. A nova Entrevista Com o Vampiro entende o apelo da vida vampírica oferecida por Lestat como uma sedução que entrelaça inextricavelmente o aspecto do desejo carnal, da fantasia de poder contra um sistema opressor, e da atração irresistível de um caminho alternativo que se oferece bem na cara das narrativas e tradições ao redor das quais Louis organizou sua vida - ou, para dizer de forma muito mais simples: um apelo queer. E há mais de um século o terror usa monstros e criaturas grotescas, entregues a seus impulsos mais básicos, para significar indivíduos que fogem das convenções sexuais e comportamentais da modernidade.

Nos seus livros vampirescos, Rice se destacou por caminhar com admirável impulso dramático na linha tênue entre se render aos prazeres barrocos dessas imagens grotescas e perguntar, no fôlego seguinte, que mal realmente havia nelas, senão o mal que existe no coração de todo ser humano. A série de Jones para o Prime Video encontra incansavelmente maneiras de fazer o mesmo, seja ao colocar Jacob Anderson e Sam Reid para trocar olhares intoxicados de paixão e horror através de uma capela encharcada de sangue, ao preencher os espaços estéreis do apartamento de Louis com a expectativa tensa da violência que pode acontecer ali, ou ao encenar as idas e vindas do casal e de Claudia por sua mansão decadente em Nova Orleans como um teatrinho de fantoches familiar que deságua em um terceiro ato brutal.

Há algo de doméstico e de operático, de macabro e de patético, enfim, em tudo o que esses vampiros fazem. Como a Bela Adormecida escrava sexual dos livros de Rice, eles estão aqui para encenar, em proporções mitológicas, o entrelaçamento incômodo de dor e prazer que faz parte das vidinhas triviais que levamos. É um bom instrumento terapêutico, poder se enxergar assim em um vampiro (ou um anjo, ou um lobisomem, ou uma bruxa) - não à toa, Rice começou a escrever após a morte de sua filha, aos seis anos de idade. E sem dúvida é uma bela prerrogativa para um pedaço de ficção.

Nota do Crítico
Excelente!
Entrevista Com o Vampiro
Em andamento (2022- )
Entrevista Com o Vampiro
Em andamento (2022- )

Criado por: Rolin Jones

Duração: 2 temporadas

Onde assistir:
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