É comum que alguns autores tenham uma boa relação com o audiovisual: Stephen King, por exemplo, é tão conhecido pela literatura quanto por suas adaptações. Aos poucos Neil Gaiman começou a se estabelecer da mesma forma ao entregar suas criações, como Deuses Americanos e Lucifer, para a televisão - mas sem muito envolvimento ou apego. Com Good Omens, adaptação da obra que coescreveu com o falecido Terry Pratchett (Discworld) na década de 1990, isso é diferente, e o carinho maior do escritor é visível.
Originalmente publicada com o título traduzido Belas Maldições, a trama acompanha a improvável amizade do anjo Aziraphale (Michael Sheen) e o demônio Crowley (David Tennant) que, em 2019, precisam se unir para encontrar o filho de Satã e impedir o fim do mundo, indo contra os desejos de seus respectivos “chefes”. A jornada soa simples mas é contada de modo que abraça o potencial insano da premissa, mostrando a interferência dos demais anjos e demônios, a infância do jovem anticristo e também outras bizarrices, como o envolvimento de uma família de bruxas em todo o caos. Mesmo assim o verdadeiro destaque fica para os protagonistas.
A série dá o merecido foco para a relação entre os dois, desde os primórdios até literalmente o fim dos tempos, ilustrando pelo caminho como um sempre se colocou em risco para ajudar o outro. A dinâmica entre Aziraphale e Crowley é leve, com bons diálogos que ajudam a definir toda a personalidade do programa - o que é aprofundado pelas ótimas performances de Sheen e Tennant, que soam naturais em seus respectivos papéis e também como amigos de longa data. A química dos dois é o que faz Good Omens ser tão divertida de assistir.
A obra original, é inteiramente construída na mistura do humor inglês de Pratchett com as tiradas irônicas de Gaiman, o que significa que o livro pira bastante na própria mitologia e também nos comentários sobre os acasos do cotidiano. Com Gaiman assinando todos os roteiros, a essência se traduz bem para as telas mas perde um pouco da coerência narrativa - afinal de contas, aqui existem limitações de tempo, dinheiro e praticidade para ilustrar os absurdos que antes ficavam por conta da mente do leitor.
Por conta disso o programa parece funcionar melhor em doses, como quando aplica a visão sarcástica dos autores a conceitos já conhecidos, por exemplo apresentar o Céu e o Inferno quase como corporações regadas a burocracias, ou até mesmo sacadas menores, como apontar que uma congestionada avenida de Londres é, na verdade, obra de demônios para propagarem mal estar diário, ou então como a Peste, dos Quatro Cavaleiros do Apocalipse, se aposentou e cedeu seu lugar no mundo moderno para a Poluição. Tudo brilhantemente colocado na narração de Frances McDormand (Três Anúncios para um Crime) como Deus.
O seriado prioriza esses momentos mas não reduz o escopo da trama original, o que faz com que os últimos episódios tenham que correr um pouco o ritmo para garantir que tudo seja concluído. É um caso em que um ou dois episódios extras poderiam fazer a diferença, desenvolvendo melhor alguns dos personagens como a bruxa Anathema Device (Adria Arjona) ou então dando mais tempo para o último “enfrentamento”, mas felizmente o resultado final ainda é muito satisfatório. Mesmo com problemas aqui e ali (como um CGI deplorável), Good Omens funciona muito bem por saber que sua força está em Aziraphale e Crowley, e fazer muito bom uso disso.
Em algumas ocasiões a escrita de Gaiman mostra incompatibilidade com a TV - algo normal para a maioria dos escritores que encabeçam suas próprias adaptações -, mas frequentemente funciona de forma charmosa e divertida. O autor se saiu muito bem como roteirista principal e showrunner, ainda que já tenha anunciado que o programa marcará seu último trabalho na função antes de retornar aos livros. Mesmo assim a série demonstra que as portas sempre estarão abertas para mais aventuras bizarras e comentários irônicos vindos da mente de Gaiman.
Good Omens está disponível no catálogo da Amazon Prime Video.
Criado por: Neil Gaiman
Duração: 2 temporadas