A doçura com que Heartstopper retratou a efervescência e a inquietude da adolescência é, talvez, a maior razão para que a série tenha se tornado um fenômeno na primeira temporada. Indo na contramão do que se convencionou nas séries teens, a produção se propôs a explorar não projetos de adultos, mas jovens inocentes — e, até por isso, mais complexos —, patinando para entender a si mesmos e aos outros. A experiência, assustadora e caótica como é, passou a ser também acolhedora, graças a uma paleta de tons pastéis, uma trilha sonora pop gostosa e recursos gráficos capazes de ilustrar o quão inebriantes podem ser também as descobertas e os primeiros amores. Quer dizer, conforme Charlie (Joe Locke) experimentava ser quem é, o espectador em casa também se sentia validado e menos só — mesmo que, diferentemente do protagonista, já tivesse passado há muito tempo pelo turbilhão que é ter 15 anos.
É impressionante, portanto, ver como a série é capaz de amadurecer nesta segunda temporada, sem que isso implique em nenhum tipo de sacrifício. A delicadeza e o cuidado para representar a humanidade do grupo de amigos se mantém intacta, assim como toda a identidade que a autora Alice Oseman construiu tão bem ao transpor suas páginas para a TV. No entanto, todos os personagens, sem exceção, passam a enfrentar dilemas mais desafiadores. A homofobia, embora ainda presente e incômoda, divide espaço com relações familiares conturbadas, questões de saúde mental e outras “inadequações” também profundas — problemas de gente grande com os quais, no mundo real, nem a maturidade é garantia de arsenal emocional suficiente para lidar de forma plena.
Essa progressão acontece de forma gradual na temporada e está intimamente ligada ao avanço do relacionamento de Charlie e Nick (Kit Connor). Depois de revelarem o sentimento um pelo outro, os agora namorados começam a construir de fato sua relação e a lidar com suas bagagens já pesadas, apesar da pouca idade. Para Nick, isso passa por encarar o abandono do seu pai. Já para Charlie, tem a ver com seu trauma recente, uma cicatriz ainda aberta na sua vida. Juntos, não apenas eles constroem autoestima e confiança para encarar suas dores, como navegam a indecisão de como e quando é o melhor momento para se assumir um casal publicamente.
Para isso, a série demonstra mais uma vez sua sensibilidade e expressa com veemência que nenhum deles deve essa informação a ninguém. E, nesse caso, a ênfase é bem-vinda: serve como uma espécie de lembrete para os jovens personagens e para o espectador de que o erro está em presumir a sexualidade do outro, e não em querer preservar mais ou menos da sua privacidade. Aliás, se tratando de Nick e Charlie, o segredo sequer passa por uma questão de vergonha, mas pelo medo de como as pessoas poderiam reagir, sobretudo tendo o caso de bullying do protagonista como referência — e a série não foge da realidade de que existe, sim, um julgamento externo, mesmo entre os colegas mais desconstruídos. Porém, tendo como parâmetro o acolhimento possível e real que existe entre o grupo de amigos, a repetição é também evidência de que há mais maneiras de conduzir a situação, e que a prioridade não é a informação, mas o que ela representa para eles, enquanto casal e enquanto indivíduos.
Entretanto, nem sempre a recorrência de diálogos e ideias é simbólica ou, mesmo, necessária. Por mais que seja relevante ver os personagens discutindo seus sentimentos de maneira tão aberta — tratam-se de adolescentes realmente desenvolvendo sua inteligência emocional, ou seja, uma utopia considerando a vida como ela é, mas que tem um claro efeito esperançoso —, às vezes a série reforça em texto desconfortos que estão dados de outra forma. Com closes eficientes nos rostos dos atores, troca de olhares no fundo da cena e, até, momentos marcantes e construídos com sensibilidade, Heartstopper já dá conta de ilustrar muito bem a gradação dramática da trama, sem se escorar no diálogo expositivo.
Por exemplo, é desnecessário ouvir tantas vezes Nick dizer como é difícil sair do armário quando, do outro lado da tela, as pessoas estão na mesma página, acompanhando de perto sua ansiedade e insegurança. Até porque está explícito que, embora seja uma situação que engatilhe Charlie, os casos de Nick e Ben (Sebastian Croft) são diferentes. Na verdade, é explícito até que Heartstopper sabe como fazê-lo, sem precisar recorrer a um recurso tão pouco inspirado como a solução textual.
O caso mais notável é a dor que Charlie carrega e mal consegue colocar em palavras. O crescendo fica implícito, sugerido nos maneirismos que aos poucos chamam a atenção. Mas até o arco de autodescoberta de Isaac (Tobie Donovan), que acontece às margens da história, é prova dessa capacidade. Afinal, até determinado ponto da segunda temporada, vê-lo no fundo da cena, escondido atrás de um livro, deixa de ser só um traço de personalidade — como a obsessão de Tao (William Gao) por cinema, a veia artística de Elle (Yasmin Finney) e os momentos introspectivos de Charlie na bateria — e passa a ser incorporado à série como um recurso cômico. Felizmente, Heartstopper vai além e acrescenta, de modo surpreendente, um nível a mais de profundidade à sua predileção pelas páginas. Mesmo que tenha um viés quase educativo — é inegável: a assexualidade é um ponto cego na sigla LGBTQIA+ —, não deixa de ser emocionante.
Este é, inclusive, um dos desdobramentos mais interessantes e positivos dessa nova leva de episódios. Porque a série de fato reserva tempo para desenvolver todos eles, em maior ou menor grau, mas sempre dando o peso devido às situações. É claro que muitos destes arcos são introdutórios, como é o caso do próprio Isaac ou da dura situação familiar de Darcy (Kizzy Edgell), mas eles são trabalhados e arrematados de forma satisfatória. Os recursos gráficos se enrijecem e, por alguns instantes, o colorido até abandona aquele universo adorável. O pânico é real — mas o oásis deles também.
Não importa o quão complicado sejam seus dilemas e conflitos, Charlie, Nick e companhia nunca estão sozinhos — e Heartstopper nunca escorrega para o cínico. A doçura ainda é seu tom predominante e a representação da chamada queer joy segue cativante. Na verdade, diante de reveses mais intensos, o acolhimento e o calor do abraço entre eles também se intensificou. Mais uma vez, Heartstopper se mostra um porto seguro certeiro: é confortável, divertida e comovente. Para os jovens e os não tão jovens, para quem a adolescência parecia uma memória distante até apertar play.
Criado por: Alice Oseman
Duração: 2 temporadas