Um homem rico, poderoso, com uma beleza impecável, dono de profundos olhos azuis e charme irresistível, se interessa por uma “plebeia”; uma mulher igualmente bela, bem-sucedida em seu mundo, mas sendo esse um mundo longe da fama e dos grandes luxos que permeiam seu amado. Ele a seduz com o melhor do apelo material, que ainda que seja bem-vindo, não é tão importante quanto a sedução propriamente dita, erótica, que equilibra romance e poder numa perigosa balança. Essa trama é imbatível e fez de Christian Grey (alvo dessa descrição) um dos grandes símbolos sexuais da década passada.
Qualquer semelhança com os métodos de Armie Hammer – astro de A Rede Social e Me Chame Pelo Seu Nome – não é mera coincidência. A autora de 50 Tons de Cinza resolveu fazer com que seu fanfic da saga Crepúsculo tivesse ares mais adultos e que o “vampirismo” de Edward pudesse ser trocado pela “peculiaridade” sexual de Grey. A questão da submissão era parte importante em ambas as obras. Contudo, aquela não era uma submissão encenada com ares de fetiche como na era Erotica de Madonna, por exemplo. A submissão era nuclear, definitiva.
A confusão entre amor e obsessão e entre fetiche e abuso não é tão incomum quanto possa parecer. É evidente que explorar a fantasia, o erotismo, é parte da vida saudável de qualquer indivíduo, mas reconhecer as fronteiras de uma prática de subjugação é difícil, sobretudo para quem não as conhece nem ligeiramente. O que se apresenta na ficção de Grey como uma espécie de mentoria, pode se tornar um pesadelo para os incautos. O fato é que todos os títulos dessa linha editorial tem uma coisa em comum: o tal passado sombrio. É a velha romantização do homem misterioso não-confiável, totalmente quebrado por seus traumas e esperando para ser salvo por um amor verdadeiro.
Então, a série documental House of Hammer parecia ter sido produzida para destruir esse mito, mas começou a demonstrar falhas na sua proposta a partir do momento que tomou a decisão de servir como um volume dois de qualquer uma dessas histórias de submissão que pipocam nas prateleiras das livrarias. Depois de um primeiro episódio que vai fundo no desmascaramento de Armie Hammer, os diretores Elli Hakmi e Julian P. Hobbs passam os outros dois flertando perigosamente com fatores genéticos na natureza do criminoso. É um caminho arriscadíssimo.
A Casa dos Martelos
Muito do que House of Hammer reserva de positivo se deve a seus depoimentos. Courtney Vucekovich, uma das vítimas de Armie, é quem acaba costurando melhor os acontecimentos do primeiro episódio. O trabalho de edição se revela ágil, interessante, bem ritmado, sobretudo quando se preocupa em ilustrar praticamente tudo que está sendo dito. Esse primeiro episódio funciona perfeitamente no mergulho dentro da personalidade e dos métodos do astro. Courtney consegue imprimir na narrativa a empolgação dos primeiros dias, a angústia das excentricidades quando elas se revelam e o medo de precisar lidar com a realidade de que aquele não é um conto de fadas.
Para os que estão buscando informações sensacionalistas ou detalhes sobre o canibalismo, a série pode ser frustrante. Mas, ao mesmo tempo, o episódio inicial não foge de nada e procura deixar com que qualquer detalhe mais escabroso saia espontaneamente das declarações das vítimas. Não é surpreendente, contudo, que uma dessas vítimas tenha declarado publicamente que o documentário é simplesmente um ato de oportunismo. Quando passamos para o episódio 2, as intenções dos diretores começam a soar bastante controversas.
Armie é descendente de uma linhagem de homens que usaram seu poder e sua fortuna para subjugar mulheres e não enfrentar as consequências disso. Ninguém está dizendo que não há uma patologia envolvida nas práticas assustadoras dele, mas quando trazem sua tia para fazer declarações sobre o passado da família, começam a desviar a narrativa da série para uma espécie de embasamento genético. De certa forma, eles falham no equilíbrio dessas abordagens. Flertam com o que estão insinuando sobre o passado e depois não conseguem mais se livrar disso. Acabam provocando uma espécie de defesa, exibindo Armie como um fruto do meio, como um eco de uma criação que ele não escolheu, como uma... vítima.
Ao menos é perceptível que esse não é um resultado intencional. O esforço em defender as vítimas e fazer alertas está ali. Mas, está soterrado por essa estranha decisão criativa de priorizar o estudo do algoz. Visitar o passado dos homens da família Hammer é uma justificação biológica do que deveria ser somente a descrição de um estilo de vida pautado pelo encaixe desses homens em todos os privilégios possíveis da vida em sociedade. Quando, ao final, os diretores tentam reforçar o quão lamentável é a ameaça da reinserção de Armie no mercado, já é tarde demais. Eles mesmos livraram seu vilão da guilhotina.
House of Hammer está disponível no Discovery+, que pode ser assinado de dentro do Amazon Prime.