Insatiable não debutou do lugar mais confortável possível: uma petição para o cancelamento da série da Netflix já somava mais de 200 mil assinaturas antes mesmo da estreia do programa, acusado de propagar ideias problemáticas sobre pessoas gordas por conta do conteúdo lançado em prévias. Apesar de Debby Ryan, a atriz protagonista de Insatiable, ter feito pedidos para que as pessoas vissem a série antes de criticá-la, a premissa do programa não ajudava muito. A trama gira em torno de uma adolescente que foi vítima de bullying durante toda sua vida por causa do seu peso e que vê sua vida mudar completamente após emagrecer por conta de um acidente que a impediu de comer sólidos por várias semanas. Doze episódios depois, as críticas originais não só são justificadas como parecem pequenas perto da avalanche de problemas da atração.
Após Ryan pedir paciência do público antes mesmo da estreia, Lauren Gussis, roteirista e produtora da série, endossou a fala da atriz. Gussis disse que “a série é uma advertência sobre como acreditar que a aparência é o mais importante pode ser prejudicial”. O problema é que, ao fim de 12 episódios, não é isso o que acontece. Parece óbvio que a trama vai seguir pelo clichê de mostrar Pat, sua protagonista, trilhando um caminho turbulento pós-emagrecimento para, ao fim da jornada, entender que seu peso nunca determinou quem ela era e que o mais importante era o que ela carregava dentro de si. Acontece que em momento nenhum a série abre mão do discurso problemático de que a única via possível para alguém gordo é a da infelicidade.
Logo de cara, há a glamourização da magreza de Pat levando em conta que a perda de peso aconteceu em função de um acidente - que ganha contornos ainda mais caricaturais levando em conta que foi no contexto de uma briga com um mendigo por um chocolate. Ao longo de toda a série, Pat trata seu passado de adolescente gorda através de adjetivos como nojenta, repulsiva ou invariavelmente infeliz e em momento nenhum essas ideias são desconstruídas, mostrando como a jovem estava errada em acreditar que sua vida melhoraria só por estar mais magra. A série nunca deixa de tratar o acidente de Pat como uma bênção por libertá-la de um passado torturante e abrir as portas para o que seria a única chance de vida digna: a magreza. Propagar isso em uma série de TV é, no mínimo, perturbador.
Além da questão óbvia da retratação problemática de pessoas gordas, a série derrapa em absolutamente qualquer outro tipo de reprodução de arquétipos ou de situações. Por exemplo, desde seu capítulo inicial Insatiable aborda com a mais completa leviandade o tema delicado do estupro, principalmente em tempos de #MeToo. A construção identitária de Bob Armstrong (Dallas Roberts) perante ao público tem como ponto de partida uma falsa denúncia de assédio sexual responsável por afundar sua carreira. Indo perigosamente na contramão da realidade, a série alimenta uma atmosfera de desconfiança sobre um quadro inegavelmente sistêmico, além de retratar uma personagem feminina que levanta voz sobre assédio como uma pessoa histérica, fútil e promíscua.
E não para por aí: além de escolher explorar uma situação pouco sensível às inúmeras pessoas que foram recentemente à mídia para denunciar seus assediadores, a série extrapola ainda mais os limites do bom senso. Regina (Arden Myrin), a pessoa que acusou falsamente Bob de “tocar as partes íntimas” de uma jovem, é, na verdade, a pedófila da história: a mulher mantém relações sexuais com Brick (Michael Provost), filho adolescente de Bob. É claro que a série trata isso, pelo fato do menor de idade em questão ser homem, em tons de piada sempre que pode. Há outras passagens desconfortavelmente semelhantes, como quando a própria Pat comemora o fato de Bob ser acusado de pedofilia por isso “dar a ela alguma chance com ele” ou quando o estupro de uma jovem de 14 anos pelo padrasto é simplesmente banalizado.
Mas o rolo compressor de incômodo não para por aí. Nonnie (Kimmy Shields), a melhor amiga de Pat, seria a única personagem psicologicamente razoável da trama se ela não passasse tanto tempo imersa em um dos mais torturantes clichês de representação midiática LGBT: o gay no armário apaixonado pelo amigo heterossexual. Durante metade da série, parece que Nonnie será apenas uma espécie de voz da consciência de Pat que pontualmente externaliza discretamente o desejo pela amiga. Chega a ser curioso o momento no sexto episódio onde Nonnie sai do armário e acusa Pat de agir como se tudo girasse ao seu redor quando, vias de fato, o roteiro não permitiu à adolescente lésbica outra coisa além de orbitar em torno da amiga desde sua primeira cena.
Ainda sobre representação LGBT problemática, é difícil ver personagens bissexuais retratados dignamente na televisão ou no cinema, principalmente no caso de homens. Há vários estereótipos nocivos comumente reproduzidos como a ideia de que o bissexual é alguém confuso, promíscuo, que a orientação sexual é apenas uma escada para um homem gay “sair definitivamente do armário” ou que bissexuais precisam estar simultaneamente com homens e mulheres para se sentirem completos - inacreditavelmente, Insatiable recorre a todos eles sem economia. Com frases como "bissexuais são como demônios ou aliens: não existem" ou "bi é apenas uma parada do trem para Gayville", a série perde nesse arco algumas de suas várias oportunidades de fazer silêncio.
Mesmo ignorando todos os problemas éticos da série - o que é bem difícil -, as próprias subtramas da protagonista só afundam mais o barco. Há, desde o começo, um triângulo amoroso entre Pat e - é claro - o novato com um carimbo de problemático estampado na testa e o certinho que é por acaso o cara mais popular do colégio. Pat, que chegou a ser rejeitada por um deles antes de emagrecer, passa boa parte da série pulando dos braços de um pros do outro, sem conseguir se decidir se prefere a adrenalina de Christian (James Lastovic) ou a segurança de Brick. Como se esse tipo de trama amorosa já não fosse um lugar-comum saturado por décadas de comédias românticas adolescentes, Insatiable consegue desenvolver a dinâmica do trio tão mal e com tanta obviedade que faz séries como Gossip Girl parecerem Família Soprano.
A série tenta construir Pat sob a lógica da adolescente perdida que erra e aprende com os erros, mas é impossível achar por algum momento que as coisas terríveis que a protagonista faz são desvios perdoáveis. Apenas por ser contrariada, Pat instaura crises destrutivas duas vezes na família do seu principal apoiador e não parece buscar redenção, já que começa a temporada pensando em incendiar uma pessoa por vingança e termina eletrocutando outra só para eliminar a concorrência em um concurso. Ainda que a protagonista esteja cercada de personagens tão ou mais problemáticos que ela, isso não é suficiente para ser usado para amenizar várias de suas ações.
Insatiable passa longe da discussão - já exaustiva, diga-se de passagem - sobre quais são os limites do humor por simplesmente se perder muito antes disso: a série encerra sua primeira temporada sem dizer a que veio. A sucessão caótica vislumbrada em seus momentos finais, envolvendo sequestros, mortes e ocultação de cadáver, é a síntese de um programa que decide não usar uma moral da história para delimitar suas fronteiras, mas que não oferece nada em contrapartida. Sem conseguir escolher entre ser uma comédia ruim pautada pelo politicamente incorreto ou uma história clichê sobre aprender a se amar sem considerar as aparências, Insatiable termina sendo apenas ofensiva e sem graça - e, provavelmente, a pior série original já lançada pela Netflix.