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Crítica

Justiceiro - 1ª Temporada | Crítica

Série da Marvel na Netflix se perde na problematização do anti-herói

17.11.2017, às 08H39.
Atualizada em 29.06.2018, ÀS 02H40

Existem duas abordagens diretas para uma adaptação dos quadrinhos. Ou se é fiel ao espírito do material de origem, respeitando os exageros característicos da arte sequencial, ou se opta pelo já clássico “sombrio e realista”, que desconstrói personagens caricatos para torná-los mais acessíveis para o público geral. No caso das séries da Marvel na Netflix, a opção é por ficar em cima do muro. O serviço de streaming ora explora com gosto os superpoderes dos seus heróis (geralmente em cenas envolvendo corredores), ora se esconde em subtramas e conspirações que adiam a entrada em um universo fantástico. Essa escolha fica ainda mais clara em Justiceiro, uma adaptação que sabe o personagem que tem em mãos, mas que se desculpa o tempo todo por ser o que é.

O começo é visceral. Os três primeiros episódios - “3 AM”, “Two Dead Men” e “Kandahar” - fazem a transição entre a vingança de Frank Castle (Jon Bernthal), iniciada na segunda temporada de Demolidor, e a criação de personagens e eventos em torno da sua causa. Justiceiro é visto no auge dos seus “poderes”, de caveira no peito, violentamente eliminando alvo a alvo da sua lista. São cenas bem executadas, exageradas, que exploram sem medo um personagem que é, essencialmente, uma máquina de matar. A transição acontece quando ele acredita ter terminado a missão: não há paz, apenas vazio.

O processo de dar camadas a Frank Castle é construído com atenção. A montagem traduz seu estado psicológico, seus fantasmas do passado, em um ciclo de rejeição ao mundo e a si mesmo. Ele se fecha, quer passar despercebido, até que a sua raiva se faz necessária novamente. Quando volta a ser o Justiceiro, ao som da voz rouca e imperfeita de Tom Waits, a série mostra que compreende seu protagonista, e o aceita. Frank Castle é um homem triste que sabe matar. Não é uma perversão, mas uma necessidade: é preciso fazer a coisa certa e esse é o caminho que ele conhece. Porém, essa conclusão simples não preenche 13 episódios e aos poucos a série vai se erguendo em torno de Castle para justificar a sua existência.

É por isso que os personagens secundários têm uma relação de contraste com o Justiceiro. Micro (Ebon Moss-Bachrach) é o reflexo do mesmo drama, mas com a possibilidade de um final feliz; Billy Russo (Ben Barnes) mostra que aparência e simpatia também podem esconder um monstro; Dinah Madani (Amber Rose Revah) é a policial idealista, americana de origem árabe, que descobre a podridão do sistema em que está inserida; e Lewis Walcott (Daniel Webber) é o filho da guerra, nascido para matar, que não encontra consolo no retorno para casa. Acontece que Frank não é um homem complicado, mas todos ao seu redor são. Eventualmente as tramas paralelas, bem executadas por seus atores, se sobressaem pela necessidade de preencher a narrativa e o personagem-título é quase reduzido ao posto de coadjuvante.

Essa é a principal consequência da abordagem da série idealizada por Steve Lightfoot: seu anti-herói é um problema a ser contornado. Como retratar um homem que, armado, faz justiça com as próprias mãos em um país que já trata massacres como rotina? O recurso de criar um grupo de apoio a veteranos de guerra, liderado por Curtis Hoyle (Jason R. Moore), insere bons argumentos ao diálogo. O mesmo EUA que se orgulha da sua “guerra pela liberdade” também é país que abandona seus soldados quando o conflito termina. Há também um paralelo interessante entre Walcott, que frequenta as reuniões, e Travis Bickle, o personagem de Robert De Niro em Taxi Driver. Ele cria uma realidade suja para poder limpá-la e a série usa sua história para deixar clara a diferença entre Castle e um terrorista.

Quando chega a hora de um inevitável debate sobre o controle armamentista, Justiceiro toma cuidado para não pisar em falso. A questão da Segunda Emenda da Constituição Americana, que assegura desde 1791 o direito dos norte-americanos de portar armas “pela segurança do país”, é debatida calculadamente. De um lado a série mostra o comportamento conservador e extremista de Walcott, que legitima seus atos “pelo bem maior”, de outro revela o senador liberal, que idealiza um mundo sem armas, mas evita qualquer contato com a realidade. No centro estão Karen Page (Deborah Ann Woll), represente do portador de armas sensato, e Frank Castle, a milícia de um homem só. É uma mistura de situações que evita conclusões e, consequentemente, o tiro do pé de condenar o vilão e o anti-herói pelo mesmo crime.

Outro cuidado que a série toma é de não glamourizar a violência. Salvo no início da temporada, quando Frank ainda não foi desconstruído em busca de respostas, todo ato de guerra é feio, sujo e é mantido até gerar desconforto. Não há uma grande “cena de corredor” na temporada, mas muitas tentativas que esbarram na constatação de que o que o Justiceiro faz não pode ser legal e inconsequente. Existe a vontade de que ele mostre do que é capaz, mas também a resistência de transformar uma habilidade de destruição tão próxima da realidade em um superpoder. Os grunhidos de Bernthal deixam clara a condição animalesca do personagem, mesmo em  momentos de necessária frieza tática. Ele sofre com cada bala (ainda que desvie de muitas), é torturado, levado ao limite e renasce em um momento de cólera para mostrar que não é exemplo para ninguém.

Nessa conta, a série poderia ter facilmente criado um arco para essa versão de Frank Castle em oito episódios. Ainda estariam lá o exorbitante poder de fogo, as angústias do homem atormentado pela perda da família, e o eventual questionamento sobre da sua existência do no mundo real. No prolongamento dessa narrativa, o personagem se distancia da sua essência e a série perde ritmo com situações mal aproveitadas, como um triângulo amoroso/familiar com Micro, ou um proto romance com Karen Page. Mesmo bons conceitos como o de Walcott duram mais do que o necessário e servem apenas como argumento, não para o desfecho da temporada. E enquanto todos os personagens terminam diferentes de como começaram, Frank Castle fica na mesma conclusão simples dos episódios iniciais (e da segunda temporada de Demolidor). 

A Netflix entende que um homem altamente armado é diferente de um ninja cego, uma mulher com superforça, um homem indestrutível e, claro, um honorável Punho de Ferro. A presença de Castle nesse universo exige muitas voltas, muitas explicações, mas esse é um personagem que não funciona em cima do muro. É quando a série descobre que não pode se divertir com o que é dentro do contexto realista em que está inserida (o que John Wick, por exemplo, consegue fazer com seus excessos). Nessa versão, Justiceiro pode matar, mas precisa pedir desculpas depois.

Nota do Crítico
Bom

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