Lá no começo de fevereiro, quando escrevi sobre os capítulos iniciais de Newtopia, caracterizei o k-drama distribuído no Brasil pelo Prime Video como “um exercício de estilo em busca de sua história”. Quem diria, portanto, que a série só precisava dobrar a aposta no que já estava fazendo antes: explorar, com muito estilo, a desconstrução de uma sociedade chacoalhada pelo surgimento inexplicável de zumbis. Toda história de mortos-vivos, é claro, é um pouco sobre essa desconstrução - a pergunta silenciosa delas é quase sempre a mesma: o que sobra da nossa humanidade, e da nossa organização social, uma vez que um perigo tão extremo se intromete nos nossos ambientes mais minuciosamente cronometrados?
O pique de Newtopia, como escrita por Ji Ho-jin (Uma Loja Para Assassinos) e Han Ji-won (Parasita), é aplicar esse processo aos ambientes de elite de um dos países mais culturalmente rígidos do mundo… e entender como a bagunça pode libertar, mesmo diante do medo e da devastação, sujeitos que se viam presos por considerações sobre as quais já não tinham controle. Daí que, quando conhecemos a jovem profissional Young-ju (Jisoo, do BLACKPINK) e o soldado Jae-yoon (Park Jeong-min), eles estão prestes a quebrar um relacionamento de anos apesar de (ao que tudo indica) continuarem amando um ao outro. Afinal, como ele pode exigir que ela espere por ele enquanto faz o seu serviço militar? E como ela não pode pensar no seu futuro, especialmente se for com o rico e gentil Jin-wook (Kang Yeoung-seok), que está claramente interessado?
As pressões que o mundo coloca em cima de uma mulher no começo da vida adulta estão cercando Yong-ju por todos os lados quando Newtopia começa. E o batalhão de Jae-yoon não é tão diferente, com sua aderência obsessiva a uma disciplina impossível, que persiste mais ou menos inflexível mesmo quando tudo começa a se despedaçar ao redor de suas barracas. Em certa cena da série, um dos comandantes do protagonista se frustra com seu próprio superior, que insiste em cobrar multas por destruição de propriedade militar após um encontro particularmente tenso com uma horda de zumbis: “As coisas estão desse jeito, e ele ainda quer que a gente pague pelo helicóptero!?”.
As movimentações que vão acontecendo por volta dessa mesma etapa da temporada - a partir do 5º ou 6º episódios, de oito no total - são emblemáticas da virada definitiva de Newtopia na direção de uma narrativa mais afiada. Se desde o começo a série apostava em um humor de observação para ressaltar o absurdo dos sistemas sociais que parodiava, por exemplo, aqui esse humor vai ficando mais amargo. Conforme a Coreia do Sul cuidadosamente esmaltada que ela retratava vai ruindo, a caricatura que funda a construção de certas situações vai ficando mais grotesca. O que antes era uma bobagem estilística se torna uma piada cruel com a cara cansada, ensanguentada e sofrida de personagens que já viram e já perderam coisa demais.
É também aí que se torna (mais) importante ter atores que consigam fundar esses personagens em uma base minimamente real. Se, no início de Newtopia, a escalação de Jisoo parecia mais um artifício barato de sátira do que uma aposta real no seu carisma e capacidade dramática, conforme os episódios vão se passando ela vai se transformando em uma heroína pela qual é bastante fácil torcer - durona, esperta e persistente, mas também credivelmente abalada, exausta, ansiosa por proteção. De certa forma, ela é uma âncora mais forte para a trama do que a sua contraparte masculina, até porque Park Jeong-min precisa lutar um pouco mais para mudar de marcha entre as patetices do seu batalhão e o investimento emocional na tragédia que os cerca.
Ambos os protagonistas, no entanto, conseguem espremer momentos de genuíno pathos no meio das brincadeiras estéticas do diretor Yoon Sung-hyun (Tempo de Caça), que parece mesmo mais interessado em fazer uma comédia de zumbis à la Todo Mundo Quase Morto, com aproximações da linguagem dos videogames que lembram outro filme de Edgar Wright - falo de Scott Pilgrim Contra o Mundo, é claro. Talvez pela insistência dele na linguagem da paródia, Newtopia perde a oportunidade de reconhecer melhor a virada que o texto opera, e as implicações de seu retrato de um mundo que precisou perder tanto e tantos para que os restantes descobrissem um pouco de liberdade. Concentrado em fazer graça, enfim, Yoon deixa que a ironia mais fina, a piada mais brutal de sua história, passe quase batida por ela.
Criado por: Ji Ho Jin, Han Jin-won