Durante toda a sua temporada, O Livro de Boba Fett é essencialmente duas séries em uma. Nos episódios iniciais, a divisão óbvia é entre a história que se passa nos flashbacks, mostrando como o personagem título (Temuera Morrison) conseguiu sobreviver à queda no poço do Sarlacc em O Retorno de Jedi, e a história no presente, em que ele ascende ao trono de daimyo (título de governante que Star Wars tira, assim como muitas outras coisas, do universo do Japão feudal) de Mos Espa, uma cidade no planeta desértico de Tatooine, e tenta manter o controle do território diante de ameaças internas e externas.
O que causa desconforto é que essa divisão não é só narrativa, mas também estética. Nos flashbacks, a equipe criativa da série adota um tom de reverência ao faroeste até mais pronunciado do que em The Mandalorian, reeditando com Fett a narrativa do forasteiro acolhido por uma tribo afastada da sociedade, que se transforma pessoalmente através da filosofia e do estilo de vida que aprende por lá. A fotografia contemplativa é complementada por um design de produção que busca fundar em relativo realismo a vivência desértica dos Tusken - esta não deixa de ser Star Wars, e portanto uma história de fantasia, mas Boba Fett é detalhista e sóbria na construção dessa parte da mitologia.
Enquanto isso, Robert Rodriguez está no comando de uma história de máfia curiosamente sentimental, e esteticamente destemida, nas cenas que se passam no presente. Durante toda essa parte da série, o cineasta resgata referências caras a ele: do stop-motion de Ray Harryhausen às criaturas inchadas e coloridas da fantasia oitentista, passando por uma visão utilitária, quase juvenil do cyberpunk. Essa O Livro de Boba Fett é uma aventura calorosa sobre um homem mais interessado em construir um sistema de suporte sólido ao redor de si, acolhendo aqueles que passaram por injustiças ou pela servidão, do que em adquirir e manter um poder que, em última instância, significa pouca coisa de concreto.
Fãs “raiz” de Star Wars, no entanto, não abraçaram essa ideia. O Boba Fett deles é um mercenário inclemente e niilista, um mito construído em cima do próprio mistério de sua história de origem. Eles não queriam ver Boba construindo uma família, muito menos se essa construção fosse guiada pela visão de Rodriguez, que dialoga tanto com o entretenimento infantojuvenil e o kitsch - e, conectados ao fandom como estão, especialistas em agradá-lo que são, os roteiristas e produtores Jon Favreau e Dave Filoni sabiam muito bem disso.
Daí as rédeas que eles colocam no diretor, os limites que eles estabelecem para que a série não se torne, integralmente, uma obra dele. Você pode ter sua gangue de adolescentes montada em vespas coloridas, Robert, desde que ceda metade de cada episódio para mostrar o que os fãs realmente querem ver: um exercício modorrento de tapar buracos no tecido narrativo da saga Star Wars, aparentemente. E daí também que, da metade da temporada para frente, quando os flashbacks finalmente terminam, O Livro de Boba Fett continua sendo duas séries em uma, porque se transforma na “temporada 2.5” de The Mandalorian que os produtores prometeram quando a anunciaram.
Os dois episódios no coração da temporada que se dedicam à história de Din Djarin (Pedro Pascal) são empolgantes e esteticamente polidos porque, bom… The Mandalorian é empolgante e esteticamente polida. Bryce Dallas Howard faz um trabalho impecável na direção do quarto capítulo, imergindo-nos de volta no universo do Mandaloriano e emprestando à série um senso épico que Rodriguez e companhia não conseguiram ou não tiveram interesse em injetar nela. É claro que fãs e espectadores casuais vibraram com esses dois episódios: eles são os únicos que O Livro de Boba Fett permite serem integralmente o que querem ser.
Fora deles, a série simplesmente não confia o bastante em si mesma para ser um produto completo, e essa falta de comprometimento incomoda ainda mais porque presume uma desvalorização do intelecto do espectador, do nerd. É como se O Livro de Boba Fett estivesse dizendo que os fãs de Star Wars não são capazes de abraçar algo diferente, algo que tenha personalidade. “Eles só querem mais um pouco do que sempre fizemos”, grita o roteiro de Jon Favreau nas entrelinhas. “Corta para o poço de Sarlacc de novo, por favor.”
Criado por: Jon Favreau
Duração: 1 temporada