Sempre houve algo de humor perverso na receita de sucesso de Ozark, que desde 2017 vem se consolidando como uma das produções mais prestigiadas da Netflix. A série, criada por Bill Dubuque e Mark Williams, se apresentou ao público como um thriller criminal com entrelinhas morais sombrias, à la Breaking Bad, mas aos poucos deixou entrever que tinha consciência de sua própria fórmula, de seu próprio lugar dentro do cânone do anti-heroísmo televisivo americano, e do pouco que ainda havia de inédito a dizer e mostrar sobre isso. É só agora, no entanto, aproximando-se do final, que Ozark resolve abraçar a sua verdadeira vocação: a de sátira.
Os sete episódios lançados hoje (21) pela Netflix, que formam a parte 1 da quarta e última temporada da série (os capítulos restantes saem ainda este ano, embora a data não tenha sido definida), são tão engraçados quanto qualquer coisa que você possa encontrar em uma sitcom. Retomando de onde o terceiro ano nos deixou, com o assassinato de Helen (Janet McTeer) nas mãos do chefe de cartel Navarro (Felix Solis) e o nascimento de uma parceria mais direta entre ele e o casal Byrde (Jason Bateman e Laura Linney), a temporada reconhece que seus protagonistas estão em um beco sem saída, e que o único jeito de seguir com a história é se agarrar à pura implausibilidade dos planos desesperados que eles bolam para se safar.
A jogada de gênio do showrunner Chris Mundy e sua equipe, no entanto, é ir um passo além e amarrar essa implausibilidade, esse quase surrealismo das jogadas dos Byrde e do quanto elas dão certo (ou errado), a uma avaliação tácita do próprio modo de vida americano. A quarta temporada de Ozark provoca o espectador o tempo todo com isso, mostrando os protagonistas tentando legitimar a fortuna conseguida com dinheiro lavado do cartel, pensando em “fazer o bem” com esse dinheiro para apaziguar as próprias consciências e, no processo, se blindar das consequências dos seus atos. Nos EUA, nos diz a série, não importa como você ficou rico, desde que saiba converter essa riqueza em poder, dando um gostinho dela às pessoas certas.
Dessa observação arguta, Ozark deixa nascer uma narrativa plenamente imoral, que nos convida a testemunhar, com os olhos arregalados e um sorriso nascendo culposamente no canto da boca, os atos cada vez mais violentos de seus protagonistas e entendê-los como perfeitamente adequados ao mundo sujo onde se encontram. Há quem vá rotular a série como niilista, uma sequência de incidentes intrincados que nos convida a pensar que nada realmente importa, mas a comédia que ela tira de seus assassinatos e de seus diálogos construídos como jogos em que um personagem tenta ser mais brutal e venenoso do que o outro não está na falta de sentido, exatamente.
Ao invés disso, Ozark é amargamente cômica porque encontra, em seu mundo criminal admitidamente absurdo, a possibilidade de refletir tanto a hipocrisia do sistema americano quanto o impulso extremamente humano de se agarrar a quem amamos e aniquilar quem nos ameaça - por mais torta que pareça a moral envolvida nos atos necessários para isso. Ninguém é melhor em expressar essa disposição do que Laura Linney, manipulando de forma absurdamente inteligente a imagem glacial que construiu para sua Wendy e encontrando todas as viradas de tom certas para dar credibilidade e verdade emocional às ameaças e decisões radicais da personagem.
Por outro lado, o coração de Ozark continua batendo firmemente no peito de Julia Garner, que reimagina a mistura de fragilidade e assertividade de Ruth para abarcar toda uma narrativa de luto, perdão e, eventualmente, a fúria cega de quem não tem mais nada a perder. Toda boa piada tem um fundo de verdade, diz a máxima, mas eu diria ainda que toda boa piada tem um fundo de dor. A quarta temporada de Ozark é o que acontece quando os EUA se olham no espelho e odeiam tanto o que veem que não são capazes de fazer outra coisa que não soltar uma sonora gargalhada.
Criado por: Mark Williams, Bill Dubuque
Duração: 4 temporadas