Em 1984, um livro de ficção científica chegou ao mercado para revolucionar o gênero e mudar a forma como outros autores olhariam para o futuro. Neuromancer foi lançado pelo escritor William Gibson numa época em que muitos dos recursos imaginados por ele eram considerados estritamente fantásticos. Um deles – a ideia de que a fronteira entre o real e o simulado está mais tênue que nunca – acabou sendo usado anos depois pelas irmãs Wachowski. Foi do livro de Gibson que elas tiraram o termo matrix, tornando-o mundialmente conhecido.
De Gibson e do subgênero cyberpunk em geral, a série Periféricos aproveita a fusão entre o real e o virtual, num contexto de futuro distópico. Flynne Fisher (Chloe Grace Moretz) vive no ano de 2032 em meio à luta para dar conta de uma mãe cega e de um irmão que nem sempre é a ajuda mais confiável. Esse 2032 é um ano em que as condições de vida no planeta já não são as melhores, mas que nem de longe sinalizam para o que Flynne está prestes a desvendar.
Seu irmão Burton (Jack Reynor) ganha dinheiro jogando, mas vez ou outra usa a ajuda de Flynne para dar conta de algum impropério. Certa tarde, quando entra num jogo de VR, Flynne depara com um assassinato que acontece de maneira extremamente realista para ela. Somente quando começa a ser perseguida por mercenários é que a moça se dá conta de que viu demais e que aquela não poderia ser simplesmente uma simulação gamificada. Flynne, na verdade, esteve ocupando um “periférico”, uma espécie de réplica humana robotizada, que recebe uma consciência externa. Ou seja, quando você está em um “periférico”, você está “vivendo” naquele corpo. O detalhe mais importante é que os periféricos fazem parte do futuro, o que leva Flynne a entender que o assassinato que testemunhou aconteceu, de fato, em 2099.
Periferia valiosa
A partir do momento que essa premissa é estabelecida, o espectador tem algo a que se agarrar. O casal Lisa Joy e Jonathan Nolan está por trás da produção, o que pode representar perigo. Os dois foram os showrunners da já extinta Westworld, um projeto scifi ambicioso da HBO, que veio para ser a aposta da empresa depois do final de Game of Thrones; seu futuro promissor, no entanto, colapsou, e Westworld foi cancelada após quatro teimosas temporadas.
É possível reconhecer os dedos de Nolan e Joy na estrutura e no clima de Periféricos. Em Westworld, era comum vermos a protagonista Dolores (Evan Rachel Wood) iniciando episódios sendo “ligada” ou “desligada” por um dos criadores do parque. Os robôs da história (ou “anfitriões” como eram chamados) e os frequentadores do parque viviam em épocas distintas e quem precisava montar as linhas temporais era o espectador. É impossível negar a semelhança que a figura de Chloe Moretz tem com Evan Rachel, ambas sendo guiadas por percepções práticas e filosóficas, em diferentes linhas do tempo e com uma constante ameaça de destruição pela frente.
Os robôs superconscientes, as trocas de consciência entre corpos desconhecidos ou familiares, as organizações misteriosas, a espetacularização de ideias apocalípticas... Há muito de Westworld em Periféricos; mas, ao mesmo tempo, nenhum desses elementos é exclusivo um do outro. Periféricos é uma série que entende os códigos da ficção científica e assume os estereótipos que o gênero invoca. O segredo do sucesso é justamente encontrar pontos de clareza entre tantas conversas codificadas e tantas terminologias independentes.
Está nessa clareza, enfim, o que faz com que a primeira temporada de Periféricos seja mais bem sucedida que a primeira de Westworld. Em meio a cansativos diálogos rebuscados que querem parecer importantes o tempo todo, existem pontos de apoio que tornam a série acessível. Essa acessibilidade só precisa estar ali até que os espectadores se conectem com a história. Quando isso acontecer, o que parece “muito complicado” vai se tornando menos, progressivamente.
Por isso, a base do enredo (Flynne está sendo perseguida porque acham que ela viu demais) é trazida de volta quando os episódios começam a ficar herméticos demais. O espectador sabe que após os diálogos vagos do futuro, a história do presente voltará para amenizar o distanciamento. Bons personagens como Tommy (Alex Hernandez), Corbell (Louis Herthum) e Billy Ann (Adelind Horan) são importantíssimos nesse sentido. Tudo sobre eles é direto, claro, com uma narrativa firme e objetiva; e nem por isso menos interessante de ver.
Então, a partir do meio da temporada, até mesmo a trama principal de Flynne fica mais compreensível, fazendo com que os episódios finais soem mais divertidos. O trabalho de Scott B. Smith como showrunner é admirável, equilibrando bem a ação com a responsabilidade de trazer camadas para essa referência futurística; ou seja, há um esforço para aprofundar os temas e os personagens, sem perder de vista o valor do entretenimento e do mistério. Ainda que com um final anticlimático, ficam pendentes elementos suficientes para um segundo ano.
Por fim, é o carisma de Moretz e de Gary Caar (seu parceiro de protagonismo) que também segura Periféricos de pé, num pódio de vitória esperado pelos fãs da ficção científica. Precisávamos de um título bem escrito, bem produzido e bem cuidado como esse, que não reinventa a roda, mas gira com ela nas direções certas. Na linguagem tecnológica, diz-se que os “periféricos” são dispositivos responsáveis pela comunicação entre homem e máquina... Os responsáveis pela série já fizeram direito boa parte do trabalho. A comunicação foi estabelecida.
Criado por: Scott B. Smith
Duração: 1 temporada