Em uma cena crucial da segunda temporada de Profecia do Inferno, um personagem importante passa por uma transformação corporal radical - processo traduzido pela equipe de efeitos especiais através de tentáculos que saem de diferentes partes do corpo do sujeito, renderizados na mistura de gosma e fumaça que é emblemática dos monstros infernais que povoam o universo da trama. Ecos de Parasyte: The Grey, outra produção sul-coreana da Netflix, que divide com Profecia não só o serviço de streaming, mas também um nome fundamental: Yeon Sang-ho.
Criador e diretor de ambas as séries, o cineasta que virou nome forte da ficção e fantasia sul-coreanas após Invasão Zumbi (2016) claramente tem se pautado na obsessão por histórias de seres humanos “ocupados” por forças externas a eles, que modificam suas identidades e seu lugar na sociedade. Parasyte se mostrou bem analítica - até um pouco repetitiva - ao desenhar os sistemas que definiam esses seres humanos antes da tal “ocupação”, e os sistemas que são criados para defini-los depois. Quando nossa realidade muda, o que muda na nossa realidade?
Profecia do Inferno, por sua vez, é muito mais preocupada com um canto específico dessa realidade do que Parasyte - e isso já era verdade lá no primeiro ano, lançado em 2021, que contava a história dos diferentes grupos religiosos que se formavam quando um fenômeno de origens místicas começava a se espalhar pela Coreia, condenando “pecadores” a uma eternidade no inferno e revelando exatamente quando eles iam morrer. Neste retorno, avançamos alguns anos no tempo e acompanhamos o caos quando alguns desses condenados começam a voltar à vida, e três organizações diferentes tentam controlar a narrativa em torno dos eventos.
Um desses ressuscitados é justamente Jung Jinsu, o carismático fundador da seita Nova Verdade, que foi o principal vilão da primeira temporada na pele do astro Yoo Ah-in (Burning) - mas que agora, diante do envolvimento do ator em um escândalo na Coreia, é vivido por Kim Seung-cheol (Nosso Eterno Verão). A série dança ao redor da substituição de seu protagonista com algum bom humor, povoando os cenários onde se passa a história com pôsteres, telas e estátuas que retratam o “novo” rosto de Jinsu, e dando a Kim a oportunidade de refazer a cena mais emblemática do personagem em um flashback impactantemente recortado para efeito dramático.
Essa predominância de Jinsu como figura cultural dentro do mundo de Profecia do Inferno libera o seu novo intérprete para transformá-lo em uma presença muito mais teatral do que era na primeira temporada. Líderes, profetas e símbolos precisam ser maiores-que-a-vida, afinal, e Kim preenche a sua versão de Jinsu com uma consciência do próprio poder que é aterrorizante, mas também uma bateria de nervos e dúvidas que o torna humano - um personagem que faz muito mais sentido para a fantasia de uma história apocalíptica que se equilibra em uma corda bamba complicada de pessimismo político e idealismo íntimo.
Entra em cena, assim, a nova vilã da trama: a burocrata interpretada com um sorriso convencido enervante pela excelente Moon So-ri (A Criada). Sob o disfarce de tentar restabelecer a ordem, ela manipula e expõe as hipocrisias das organizações religiosas nas quais se infiltra em nome de um poder institucional que busca, acima de qualquer coisa, controle. Profecia do Inferno fala, assim, das mentiras convenientes que os poderosos nos contam, dos ideólogos falsos que eles colocam diante das câmeras para contá-las, e das infrações à privacidade e identidade que deixamos passar em nome do conforto ilusório que eles vendem.
É uma temporada melhor resolvida do que a primeira, em todos os aspectos. Energizado por um novo senso de propósito narrativo, Yeon Sang-ho também traz o seu melhor para a direção, fazendo mais com o orçamento limitado do streaming e integrando cenas de ação brutais à narrativa para ajudar a construir os heróis dessa história, mesmo em um ambiente onde heroísmo é tão improvável. A saber: em Profecia do Inferno, heróis são aqueles que, mais do que “ver através” das mentiras institucionais, as ignoram por entender verdades mais intrínsecas dentro de si. Num universo de exaspero espiritual, estar em paz com a própria consciência é um luxo raro, e um ato de coragem.
Criado por: Yeon Sang-ho