Com seis filmes lançados entre 2002 e 2016, Paul W. S. Anderson conseguiu transcender o esgotamento da sua visão muito particular sobre o universo de Resident Evil, quer você goste dela ou não. Para o cineasta britânico, a franquia de games de horror e sobrevivência da Capcom servia apenas para emprestar seu nome e uma rica base iconográfica a um exercício de cinema de ação onde a forma seria autossuficiente. Entendendo como intransponível às telonas a experiência de vínculo emocional que um jogador desenvolve quando controla um personagem de jogo eletrônico, Anderson fez da protagonista original Alice (Milla Jovovich) um arquétipo impessoal de heroísmo surrealista, e ponto focal daquilo que sobrava: o espetáculo sensorial. Mas a longevidade da saga a fez muito bem, já que desafiou essa noção, invocando afeto ao gradativamente conferir à guerreira um carisma mais caloroso.
Apesar de um inegável sucesso nas bilheterias, com mais de US$1,2 bilhão arrecadados no mundo e uma marca respeitável (ainda que ocasionalmente pejorativa) deixada na cultura pop, essas escolhas despertaram por anos a ira de fãs dos jogos. Ao invés de se debruçar sobre um cânone já desenvolvido, Anderson preferiu tornar tudo aquilo bucha de canhão para sua própria visão; escancarando aí um certo desdém por toda aquela reverência gamer. Se havia algum alento para essa parcela do público era tanto a certeza de que nenhum sucessor se atreveria a imediatamente repetir a fórmula, quanto a esperança de que a alternativa seria privilegiar a fidelidade aos jogos.
De certa forma, eles estavam certos. Se Resident Evil: Bem-Vindo a Raccoon City se comprometeu com a nostalgia da forma mais óbvia nas telonas, recriando fielmente cenas e cenários dos dois primeiros jogos da franquia, Resident Evil: A Série se anuncia como uma versão mais arrojada da mesma coisa na TV. A produção da Netflix não só não nega nenhum dos eventos conhecidos nos consoles, como concentra sua conexão com o material de origem em um dos seus mais memoráveis personagens: o virologista, espião e notório vilão Albert Wesker (Lance Reddick). Faz isso para invocar um ar de mistério, já que canonicamente Wesker morreu em 2009, durante os eventos do game Resident Evil 5. Só que a condução das revelações pertinentes a essa premissa é de um amadorismo tão flagrante e ofensivo que parece determinado a testar os limites do desinteresse do público.
Dividida em duas linhas temporais, que se alternam ao longo de todos os oito episódios da primeira temporada, a série parece estruturada para trabalhar um constante e frustrante desarme de tensão, sem nenhum motivo aparente. Somos inicialmente apresentados à realidade pós-apocalíptica de 2036, onde Jade Wesker (Ella Balinska) se aventura por uma Londres dominada por mutantes comedores de carne humana — zumbis, se preferir, mas que aqui não são exatamente mortos-vivos — para estudá-los e, assim, tentar encontrar uma forma de promover um convívio pacífico. Paralelamente, acompanhamos como se deu a tragédia que pôs fim ao mundo como conhecemos, lá no ano de 2022. Foi nessa data que Jade (vivida por Tamara Smart na fase adolescente da personagem), sua irmã Billie (Siena Agudong no passado e Adeline Rudolph no presente) e seu pai Albert se mudaram para a cidadela corporativa Nova Raccoon City, da Corporação Umbrella. Como todos esses nomes sugerem imediatamente aos fãs da franquia, algo de muito sinistro deve estar por trás de tudo, claro, mas é aí que o showrunner Andrew Dabb perde totalmente a mão.
Os saltos constantes entre presente e passado acabam minando o desenvolvimento de Jade, o que automaticamente diverge a atenção do espectador ao personagem que parece mais carregado de sentido e significado na trama: Albert. O problema é que Albert, essencial na linha do tempo de 2022, é fundamentalmente um coadjuvante, irrelevante para os eventos que de fato podem moldar aquela realidade fictícia. Em essência, tudo que vemos ele protagonizar não só já aconteceu como está consumado no futuro que já conhecemos. Esse ouroboros da irrelevância se repete com Billie, cuja importante ausência em 2036 faz com que as idas e vindas de dramalhão barato que marcam a personagem sejam uma telegrafada perda de tempo; já sabemos logo de cara para onde elas vão levar. E, à medida que personagens do passado vão dando as caras no presente, mais e mais se esvazia de propósito gastar tempo de tela vendo aquilo que podemos inferir intuitivamente.
Essa total incompetência em fazer funcionar o principal recurso narrativo escolhido para formatar a trama faz com que Resident Evil: A Série só funcione ocasionalmente. Fãs de ação desmiolada podem encontrar algum divertimento na correria ensanguentada reservada a Jade em 2036, ainda que ela aconteça desprovida de cuidado estético ou qualquer investimento em uma atmosfera de horror. Já em 2022, há a tentativa de captar um público jovem com a novelinha adolescente das irmãs Wesker e do amigo de colégio Simon — que não poderia encontrar uma resolução mais cretina. O que deveria ter sido âncora da série, mas acaba apagada nessa mesma linha do tempo é a sátira ao corporativismo impressa na relação de Wesker com a Umbrella. Níveis e mais níveis acima dos seus colegas de cena, Reddick entrega a versão mais fascinante do personagem até hoje, em qualquer mídia. Só que nem sua interpretação consegue sair impoluta da bagunça que se cria conforme Dabb tenta casar tantos tons diferentes em algo minimamente coeso.
Na era dos algoritmos que escrevem roteiros, a matéria fétida bate de vez no ventilador quando é escancarada a ligação direta com os jogos, revelando que qualquer pretensa sofisticação anunciada na premissa foi preterida pelas ideias mais manjadas e pelas justificativas mais preguiçosas possíveis — transformando em ofensa cada easter egg gratuito que é entregue a conta-gotas como se capaz de redimir tanta ruindade. Em termos mais práticos, essa é uma série chamada Resident Evil que inclui tosqueiras como: uma sequência digna de Os Batutinhas (1994), com crianças se arrastando pelo chão de uma sala de estar para se esconder de câmeras de segurança; uma personagem cuja mente foi controlada por computador dançando ao som de Dua Lipa em meio ao apocalipse zumbi; um crocodilo zumbi gigante sendo amansado por uma garotinha sem qualquer esforço ou intenção. Mas, olha só! Lá está o casaco de couro tradicional de Wesker! Não funciona e admite a franquia da Capcom como mera muleta para uma série de ação, drama e terror onde nenhum dos três é bem desenvolvido.
Partindo da promessa de mistério, reviravoltas e reverência ao cânone de Resident Evil, a série da Netflix surpreende apenas ao conseguir ser, de longe, a pior adaptação em live-action da franquia. E não só por ser inconsistente, apressada, exageradamente complicada e involuntariamente boba, mas principalmente por ser desinteressante. Diga o que quiser sobre a visão artística visualmente brega e narrativamente simplista de Paul W.S. Anderson e seus filmes, mas ali havia ao menos algum objetivo artístico. Resident Evil: A Série, por sua vez, tem tanto propósito quanto seus monstros em decomposição, que se movem a esmo guiados apenas pela vontade de consumir mais e mais — e, por isso, precisam ser abatidos. Com um primeiro ano onde o real horror é suportar oito episódios à frente da TV, é difícil não torcer para que a produção tenha logo o mesmo destino.
Criado por: Resident Evil
Duração: 1 temporada