Bastaram alguns meses de tranquilidade, lidando com problemas somente mundanos, para que Will (Noah Schnapp) fosse de vítima absoluta do Mundo Invertido para mero coadjuvante em Stranger Things. Mesmo assim, é ele quem protagoniza uma das cenas mais tocantes da quarta temporada. Sem qualquer ambição de grandiosidade, nem ameaça monstruosa pelo caminho, o adolescente demonstra toda sua coragem quando, de coração partido, aconselha Mike (Finn Wolfhard) sobre seu relacionamento com a Eleven (Millie Bobby Brown). E, como se suas lágrimas não fossem suficientes para dar conta da sua vulnerabilidade, os olhares furtivos de Jonathan (Charlie Heaton) pelo retrovisor denunciam o quanto dói no irmão mais novo estender a mão para seu melhor amigo dessa maneira.
Por mais simples que pareça, este diálogo, tão genuíno, sintetiza muito bem a força da série da Netflix: em meio à toda aquela avalanche de referências nostálgicas e pirotecnia, o trunfo de Stranger Things está mesmo no amor que estes personagens sentem um pelo outro, em todas as suas formas. Não importa quem enfrentem, se um dragão de três cabeças ou um inimigo de outra dimensão, é a união deles que os fazem seguir em frente, firmes, assim como mantém vivo o interesse do espectador de acompanhá-los. É ousado, portanto, que os irmãos Duffer tenham optado por colocar praticamente todas essas relações em cheque na quarta temporada. Um risco bem-vindo e que se traduziu, sim, em ótimos arcos, mas que não foi garantia de um resultado pleno.
Conceitualmente, a desconstrução destes relacionamentos até então inabaláveis foi muito esperta. Ao se valer das distâncias geográfica e emocional que vieram como consequência da Batalha no Starcourt, Stranger Things pôs seus heróis no divã, encarando todos os traumas que acumularam desde a descoberta do Mundo Invertido. A dinâmica, inédita até aqui, trouxe um amadurecimento muito pertinente para a série, não só por reconhecer que não dá para ninguém sair ileso depois de tanto derramamento de sangue, mas também por não tentar disfarçar o fato inegável de que ninguém naquele elenco é mais criança. Eles cresceram e, melhor do que ficar em negação é tirar proveito disso.
Com cada um dos protagonistas em jornadas internas particulares, o seriado estabeleceu o cenário ideal para introduzir a maior das suas ameaças. Afinal, sem uma comunicação funcional, nem os poderes da Eleven, os riscos são naturalmente maiores. Porém, os irmãos Duffer foram além. Criando Vecna aos moldes de Freddy Krueger, os criadores lapidaram o tema central da temporada e, de quebra, encontraram o respaldo que faltava para dar mais um passo na escalada do terror na série. Não à toa, Vecna não poupa vítima, nem espectador da sua crueldade. Ele se deleita a cada pesadelo que cria, e o público tem cadeira cativa para acompanhar todos os corpos se contorcendo enquanto ele fica mais próximo da vitória.
Como efeito colateral, no entanto, a dissonância do grupo afeta a fluidez dos episódios. Veja, para conciliar tantas linhas narrativas simultâneas, Stranger Things opera na constante quebra de ritmo, ou seja, desenvolve uma situação e, assim que ela estoura, muda de núcleo em uma tentativa de manter a tensão sempre alta. Infelizmente, esse é um plano que funciona só no papel. Porque se por um lado o que acontece em Hawkins é de fato aflitivo e fervilhante, não se pode dizer o mesmo da trama que se desenrola na Rússia. E explicar essa distinção é muito simples: um núcleo contribui para a construção do universo de Stranger Things e o outro, só atrapalha.
Não dá para entender porque os irmãos Duffer decidiram salvar o Hopper (David Harbour). Além de tirar o peso do seu sacrifício na terceira temporada, tão bonito depois de frisar sua vontade de viver ao lado de Joyce (Winona Ryder), não há motivo que justifique toda a sua luta dentro da gulag: nem nova descoberta sobre o Mundo Invertido, nem desenvolvimento de personagem substancial. Na realidade, o que acontece é o oposto. Em mais uma tentativa de alçar o ex-delegado de Hawkins ao posto de um daqueles tradicionais heróis turrões dos anos 1980, Stranger Things investe em cenas de ação sem muita urgência e em um monólogo artificial sobre seu passado que não só não acrescenta, como termina por sacrificar o heroísmo de Joyce. De repente, a mulher que fez de tudo para salvar seu filho de monstros de outra dimensão é deixada para fazer caretas enquanto todo mundo, inclusive o Murray (Brett Gelman), salva o dia. Assim, em vez de ser uma boa notícia vê-lo vivo, Hopper no fundo se torna um estorvo para a quarta temporada.
Não bastasse isso, a divisão do grupo reflete ainda no uso excessivo do discursivo para dar conta da própria mitologia. Colocar Dustin (Gaten Matarazzo) para ter epifanias sobre o Mundo Invertido, por exemplo, tem alguma serventia, já que coloca o espectador mais distraído a par do que está em jogo. Mas a repetição do falatório de Vecna à la vilão de Scooby Doo só demonstra a falta de traquejo de Stranger Things para conciliar as respostas à trama, algo que sequer a duração consideravelmente maior dos episódios foi capaz de suavizar.
Ainda assim, o saldo da ousadia dos irmãos Duffer foi positivo. Isso porque, por mais inconstante que possa ter sido, Stranger Things nunca tirou os olhos do que lhe é intrínseco, isto é, o amor entre seus protagonistas. A separação foi, portanto, mais do que um gatilho para expandir seu universo, mas uma ênfase na potência das velhas e, por que não, novas amizades. Por isso, a cena de Sadie Sink correndo em direção aos amigos ao som de Kate Bush não é bela só no sentido estético da coisa. É genuína e profunda, assim como o simples diálogo entre Will e Mike, ou a relação fraternal entre o novato Eddie (Joseph Quinn) e Dustin. No fundo, o seriado se beneficia dos efeitos especiais, mas a verdade é que o que reaviva o charme da primeira temporada é ter um olhar gentil para seus protagonistas — mesmo que, no final, sobre um tom agridoce.
Criado por: Netflix
Duração: 4 temporadas