A advocacia sempre foi uma carreira ambígua, cercada de linhas tênues entre ética, moral e princípios. Sobretudo a advocacia glamorosa dos programas de TV, perpetuada depois de anos de séries como a própria The Good Wife, que serviu de base para o que os criadores Michelle King e Robert King fizessem o spin-off. Pagos para defender ou acusar, os advogados são mestres da argumentação, capazes de encontrar brechas na lei para inocentar até o mais cruel dos assassinos ou levar para o corredor da morte um réu inocente. É uma profissão que exige flexibilidade moral, já que o trabalho de um advogado pode modificar drasticamente a vida de uma pessoa, para sempre.
Os criadores de The Good Fight sempre tiveram uma queda por essas ambiguidades. Quem assistiu The Good Wife sabe que nem sempre Diane (Christine Baranski), Alicia (Julianna Margulies) e Will (Josh Charles) faziam a “coisa certa” e muito do dinheiro que ganhavam vinha de absolvições que machucariam a dignidade de qualquer pessoa regular. O mundo daqueles personagens era cercado de acordos milionários e intrigas afortunadas. Sobretudo lá, a relação de afeto com o lado negro da força era uma constante, o que talvez tenha levado os mesmos criadores a tornarem o spin-off um exercício filosófico a respeito.
Assim, depois de passar a primeira temporada investigando o escândalo que envolvia a família de Maia (Rose Leslie), The Good Fight voltou com uma proposta menos centralizadora e colocou seus advogados na linha de frente do combate. O título da série nunca fez tanto sentido quanto agora, quando os personagens passaram a ter que – literalmente – lutarem pela própria vida, quando uma onda de atentados contra advogados começa a tomar conta de Chicago. Chegou o momento, então, de ver a firma reconsiderar passos, investigar os próprios erros e saber também como gostaria de proceder no caminho que se segue.
Dirty Diane
Com três episódios a mais, a segunda temporada pôde se planejar muito bem e garantir que em nenhuma das semanas não houvesse nada a dizer. Essa provavelmente foi a melhor coisa a respeito desse ano: ele sempre tinha o que dizer. O universo de The Good Fight está cercado de detalhes limítrofes que vão desde as questões raciais que envolvem a firma (que antes só tinha negros), até as questões de gênero. Todas as personagens mais fortes do show são mulheres e essa fortaleza coletiva vai desde a sócia até a secretária. Marissa (Sarah Steele), por exemplo, cresce tanto que sua importância na resolução dos eventos se tornou indispensável (e ela se tornou investigadora).
É bem verdade que depois de um primeiro ano muito focado em Maia, os roteiristas resolveram dar mais atenção às vidas de Lucca (Cush Jumbo) e Diane. Lucca viu-se num zona de perigo assim que a temporada começou: a mesma zona que condenou Kalinda ao limbo lá em The Good Wife. Assim como Kalinda, Lucca tem uma casca pessoal dura, tem dificuldades de demonstrar sentimentos e fraquezas, é cínica e irônica. Quando engravidaram a personagem, tornaram sua relação com Colin (Justin Bartha) uma parte importante de sua trajetória. Contudo, não erraram a mão dessa vez. O casal funcionou, tinha química, a gravidez foi tratada com segurança e ver Lucca compreendendo que sua amizade com Maia e Marissa era, de fato, a coisa mais emocional de sua vida, foi bem bonito.
Mesmo assim, a temporada foi de Diane, que nunca teve – em sete anos de The Good Wife – um conjunto de episódios que levassem sua personagem para tantas nuances como dessa vez. Alterada quimicamente ou carregando uma arma na bolsa, Diane passou pelos eventos da temporada marcando todo o território a unha. A rivalidade e admiração por Liz (Audra McDonald) ajudou nesse colorido, porque Diane nunca foi capaz de confiar muito em outras mulheres. Verdadeiramente, a perseguição aos advogados levou a personagem a rever a própria história de uma forma impressionante. Num mesmo episódio, Diane passou de democrata convicta à uma mulher profundamente assustada, que se arma por medo, exatamente como as convicções republicanas levam o cidadão americano a se comportar. Em seu trabalho, Baranski conseguiu aprofundar essas nuances e torná-las parte de um processo notório de amadurecimento.
Isso sem falar na elegância da série. The Good Fight tem um dos melhores textos da televisão atual, cheio de provocações políticas e referências culturais que viram deleite para o espectador. A direção dos episódios é limpa, firme, sem exageros e arestas. O episódio da invasão que leva ao atentado dentro da firma é um exemplo do quanto eles podem ser brilhantes numa produção que custa tão pouco para ser feita. A série é completa e absolutamente baseada em texto, em sagacidade e inteligência. Há, ainda, cliffhangers importantes para o ano 3. Toda a tramaenvolvendo a investigação contra Diane vai repercutir pesado nos eventos futuros, que incluem um embate contra Ruth e um mistério sobre quem anda praticando espionagem direta.
Se a terceira temporada continuar nesse nível de excelência, não há a menor chance de The Good Fight não manter seu posto de grande drama contemporâneo. É como se os Kings tivessem entendido que muito melhor do que ser moralmente flexível e financeiramente ambicioso, é ser tudo isso e também ser – vejam só – humano.