Não dá para negar que The Narrow Road to the Deep North é uma confecção televisiva sedutora. Bancada com o dinheiro conjunto da Amazon MGM e da Sony Pictures - além de um par de produtores de médio porte da Austrália -, esta minissérie investe alto na realização minuciosa da narrativa de guerra épica e sentimental traçada por Richard Flanagan no premiado livro de mesmo nome (publicado no Brasil como O Caminho Estreito para os Confins do Norte). É uma produção suntuosa e cuidadosa com as atmosferas que constrói, um trabalho que o diretor Justin Kurzel (Macbeth, A Ordem) rege a partir de colaborações eminentemente competentes de seus parceiros criativos mais próximos.
Daí que, quando o protagonista Dorrigo (Jacob Elordi) começa a se deixar seduzir por Amy (Odessa Young) - mesmo ela sendo a mulher de seu tio, o diligente Keith (Simon Baker) -, o cineasta aumenta o volume da trilha sonora assinada pelo irmão Jed Kurzel (líder da banda The Mess Hall), com suas cordas e assobios melancólicos, para nos comunicar que esta é uma história de amor condenada pelo destino. É um procedimento intoxicante, especialmente quando a música se entrelaça ao som das ondas se quebrando no litoral próximo à casa de Amy e Keith… quase o bastante para nos convencer de que este pedaço da história tem algo na cabeça além de um rascunho geral de melodrama.
O problema, é claro, é que ela não tem. Como condensada por Shaun Grant, colaborador contumaz de Kurzel (são deles os roteiros de Os Crimes de Snowtown, A Verdadeira História de Ned Kelly e Nitram), a trama retirada do livro de Flanagan não conta exatamente com personagens, e sim evocações de sentimentos cuja eficácia na tela depende quase totalmente do trabalho dos atores. Não ajuda, portanto, que Jacob Elordi entre muito rápido no piloto automático de jovialidade lânguida e cheia de anseios que tem se tornado sua persona padrão; e nem que ele seja contraposto em cena pelo sempre brilhante Ciarán Hinds, como a versão mais velha de Dorrigo, dono da única performance que se eleva para além dos desenhos mais básicos do texto.
E é claro que não há nada de errado com um pouco de melodrama, ainda mais quando realizado de maneira tão integral quanto a proposta por Kurzel e cia…. mas The Narrow Road to the Deep North não é só a história de um affair ilícito, e suas consequências através das décadas. Ele é também, ou talvez seja mais correto dizer que ele é principalmente, uma história de guerra. O que separa Dorrigo de sua amante, afinal, não é só a ira atrasada do tio, ou ainda o ciúme da sua prometida Ella (Olivia DeJonge), uma aristocrata sobre a qual ele nutre sentimentos ambivalentes. É a convocação para a Segunda Guerra Mundial.
O serviço no front, tragicamente, leva o jovem australiano a um período traumático como prisioneiro de guerra japonês, um dos milhares responsáveis (junto a civis do Leste Asiático, sequestrados pelo exército imperial) por construir a Ferrovia da Birmânia. Embora Dorrigo não seja um personagem real, a ambientação dos horrores bélicos que vemos durante a minissérie certamente é: a Ferrovia da Birmânia foi completada em 1942, e ficou mais conhecida como Ferrovia da Morte, por conta dos maus tratos sofridos por aqueles que a construíram - uma porcentagem chocante dos quais não sobreviveram até sua inauguração.
The Narrow Road to the Deep North até muda um pouco o seu procedimento artístico ao cobrir essa parte da trama, deixando a trilha sonora largamente de lado para nos imergir nos sons da floresta, enquanto a fotografia de Sam Chiplin (O Desconhecido) faz arte a partir dos tons terrosos que cercam os soldados. Nesses momentos, a dedicação da minissérie ao sensorial e ao atmosférico gera dividendos - a denúncia histórica que pretende fazer é mais potente, mais chocante, por ser encenada com tanto esmero. E até o roteiro parece crescer ali, se esforçando para fazer jus ao que o seu protagonista expressa tão bem, logo no primeiro episódio: “Não é que as pessoas não saibam nada da guerra. Elas sabem uma coisa. A guerra é muitas”.
Nesse sentido, a minissérie lançada no Brasil pelo Universal+ acerta em cheio. Seus vilões japoneses são monstros, mas também têm uma consciência, também seguem uma doutrina, também representam uma reação à violência. Seus heróis australianos não são avatares de virtude, mas companheiros cujo laço é palpavelmente humano, temperado por um bom humor quase milagroso. A guerra em The Narrow Road é mesmo muitas coisas - e talvez ela até seja, então, o amor perdido de um rapaz mimado que nunca aprendeu a se contentar com o que tem. Pode ser uma verdade, mas nem todas as verdades são cinematográficas.
Kurzel e seus colaboradores são talentosos o bastante para impressionar momento a momento, e espertos o bastante para não se estenderem muito além do momento em que seus truques começam a ficar manjados. Mas nem eles conseguem convencer de que o casinho de novela de Dorrigo nos importa - não quando tanto mais está em jogo.
The Narrow Road to the Deep North
Criado por: Shaun Grant
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