No primeiro episódio de Uncoupled, sitcom da Netflix, o corretor de imóveis Michael (Neil Patrick Harris) está em um evento social com amigos quando recebe um SMS do seu namorado, Colin (Tuc Watkins), declarando que o relacionamento acabou. Os dois estavam juntos há 17 anos e, compreensivelmente, Michael surta; ele vai ao banheiro e vomita com a notícia. Um de seus melhores amigos, Stanley (Brooks Ashmanksas), nota o que ele esteve fazendo lá dentro e comenta depois: “Então esse é o seu segredo. Eu nunca consegui aprender”.
O diálogo, escrito pelos criadores Darren Star (Sex and the City) e Jeffrey Richman (Modern Family), é uma referência à bulimia, é claro. Uma piada fácil, já feita milhares de vezes por milhares de outras sitcoms, e portanto previsível - especialmente porque Stanley é escrito para ser o “patinho feio” do seu grupo de amigos, talvez por aparentar a própria idade, ao contrário de Michael e dos outros gays quarentões malhadíssimos que disputam galãs algumas décadas mais jovens durante a temporada.
A falta de realismo de Uncoupled não é o problema, no entanto. Aceitar a artificialidade de uma sitcom da Netflix, ou de qualquer obra supostamente representativa saída de Hollywood, a essa altura do campeonato, é um exercício com o qual já estamos acostumados. O jogo aqui é garimpar pedaços de verdade em meio às mentiras cosméticas de cada produção, e não me levem a mal: Uncoupled topa com muitas dessas verdades durante os oito episódios de sua primeira temporada.
A série é uma crônica vívida e autêntica, por exemplo, do choque de gerações que existe na comunidade LGBTQIA+ - talvez não a produção televisiva a abordar isso com mais sensibilidade (recomendo Vida ou Tales of the City), mas sem dúvida uma das mais francas e dispostas a engajar-se com a discussão de frente. Uncoupled é também esperta ao destrinchar aos poucos a solidão do homem gay de meia-idade, em uma cultura que valoriza e fetichiza a juventude, e apontar um dedo venenoso para as “saídas” apresentadas a eles pela sociedade, que na realidade não levam a lugar nenhum.
O trunfo de Star, Richman e sua equipe de roteiristas é conhecer essa realidade o bastante para construir personagens que a representam bem. Enquanto Stanley é o solteirão que aceitou sua sina e desfruta bem da própria companhia, o outro melhor amigo de Michael, Billy (Emerson Brooks), além de um narcisista incorrigível, se recusa a fazer as pazes com a própria idade e vive de casinho em casinho com homens bem mais novos do que ele. Jogado no meio dessa dicotomia após anos sem precisar pensar nela, o protagonista passa a temporada em estado de ponto de interrogação, o que é - por mais que não beneficie a performance de Harris - extremamente compreensível.
O procedimento se repete com boa parte do elenco coadjuvante. Se Ashmanksas e Brooks são as presenças masculinas mais próximas a Michael, Tisha Campbell (como a sua parceria de negócios, Suzanne) e Marcia Gay Harden (como uma cliente exigente, Claire) fazem as vezes de energias femininas da trama. A primeira, com o seu dilema sobre ser mãe solteira e manter o filho na distância correta para conseguir ter uma vida própria; a segunda, com seu próprio divórcio amargo para lidar e as questões de privilégio e preconceito que levanta de forma estabanada. Elas também, de sua forma, prendem o protagonista entre elas e seus problemas enquanto ele rodopia diante de uma vida pessoal desestabilizada.
Uncoupled sabe balancear todas essas dinâmicas, trata a humanidade de seus personagens com bastante generosidade (embora Suzanne passe muito perto de ser só um estereótipo, e isso não é nenhuma coincidência), e envolve o espectador em seu drama com facilidade. O problema é mesmo aquela piada com bulimia… e aquelas duas outras com assédio sexual, e mais algumas recorrentes com o racismo latente de Claire, e pelo menos uma mão cheia de gracinhas com a identidade de gênero de filhe dela.
Todas essas tiradas são guiadas por um espírito muito mais maldoso do que satírico, colocadas aqui mais por terem sido o primeiro impulso de seus criadores do que por qualquer tentativa de subversão. Como resultado, as risadas genuínas de Uncoupled são poucas, muito espaçadas, e devidas sempre a talentos que suplantam o texto, seja na frente ou atrás das câmeras (uma cena de Stanley é particularmente divertida, graças a uma combinação entre a boa montagem e o timing perfeito do ator).
É bem difícil, no fim das contas, não se irritar com uma comédia que dispensa tanto cuidado e tanta sensibilidade a tudo… menos à comédia.
Criado por: Jeffrey Richman, Darren Star
Duração: 1 temporada