O primeiro personagem assumidamente gay da TV americana apareceu num episódio do sitcom All In The Family (Tudo em Família), em 1971. O programa da CBS estava ainda no início de sua trajetória, naquele modelo clássico que já conhecemos bem: uma família com um pai conservador e pernóstico, uma mãe equilibrada e filhos ou parentes divididos entre o meio burro e o muito questionador. Com todos os avanços que já fizemos na televisão, as comédias ainda repetem esse modelo. All In The Family tinha a vantagem de ter nascido para fazer alguns estragos nas barreiras que ainda consumiam os Estados Unidos.
No episódio em questão, Archie (Carroll O'Connor) tinha seus modos grosseiros e ultrapassados desafiados com a chegada do “amigo frutinha” de Mike (Rob Reiner). A chegada do personagem afeminado disparava uma série de comentários homofóbicos por parte do dono da casa, mas Mike insistia em reforçar que os trejeitos de Roger (o nome do amigo) não podiam determinar se ele era ou não “um frutinha”. O objetivo maior do episódio era surpreender Archie com uma verdade inevitável: nem todos os gays são reconhecíveis à primeira vista. Após passar muito tempo reclamando com seu amigo Steve (Phillip Carey), Archie descobre que ele mesmo, Steve, é quem era, na verdade, gay.
A coragem dos roteiristas foi amplamente reconhecida - e criticada – na época. A revolução no bar Stonewall tinha acontecido há muito pouco tempo e a primeira Parada do Orgulho Gay ainda era uma estranha aos olhos da grande maioria dos americanos. Os criadores de All In The Family levaram o episódio ao ar, mas a palavra “gay”, de fato, não foi dita em momento algum por nenhum dos personagens. E Steve, que na sinopse aparecia como “o amigo de longa data de Archie”, nunca mais deu às caras na série. Ainda que o sitcom tivesse tido outros momentos importantes em sua trajetória, esse era um tempo em que os personagens e as narrativas de diversidade só poderiam ser procedurais e transitórias. Na semana seguinte, tudo precisava “voltar ao normal”.
O Começo
Não é que os personagens gays só tenham começado a aparecer na TV na década de 70. Na verdade, eles sempre estiveram ali, mas além de serem colocados num lugar caricatural que levava apenas ao riso fácil, eles não tinham o direito de ocupar nem mesmo o lugar de coadjuvantes. O canal ABC até que tentou, em 1975, com a série Hot l Baltimore. A produção, que acompanhava a rotina de um hotel que tinha a letra “e” apagada no letreito (daí o título), tinha entre seus personagens aquele que pode ser considerado o primeiro casal gay a ser claramente admitido em rede nacional nos Estados Unidos. George e Gordon (Lee Bergere e Henry Calvert) eram homens maduros e apesar da coragem em colocá-los como personagens do elenco fixo, a série patinou na audiência e foi cancelada.
<p">A partir daí, personagens gays passaram a ser turistas em séries de sucesso que ainda se arriscavam a abordar o assunto. As lésbicas tinham ainda menos representatividade, já que não podiam ser colocadas como alívio cômico entre um quadro e outro. Para elas, restava a identificação indireta. Mesmo assim, o primeiro beijo gay aconteceu entre duas mulheres, em 1991, no procedural LA Law. Porém, tanto em LA Law quanto na comédia Roseanne, esse “beijo” foi apenas um selinho e não representava uma crescente narrativa que pudesse fazer com que o público queer se sentisse realmente representado. Embora haja uma importância histórica em cada um desses momentos, eles continuavam à sombra de uma suposta tentativa de apenas chocar, sem objetivos realmente desbravadores.
Um dos maiores fenômenos adolescentes da história, Barrados no Baile (1990-2000) conseguiu incutir apenas algumas storylines pequenas que envolviam personagens gays. Darren Star, criador da série, declarou que era muito difícil convencer os executivos da Fox a admitirem a diversidade sexual como parte presente das narrativas. Ele tentou de novo com Matt (Doug Savant), em Melrose Place. Em 1994 uma cena de beijo foi filmada, divulgada e todos esperaram ansiosos em frente à TV. Na última hora, o beijo foi cortado e voltamos à estaca zero.
O Meio
O sitcom Ellen estreou no mesmo ano em que a Fox cortou o beijo de Melrose Place. Ellen Degeneres era uma estrela em ascenção e com três temporadas tão sólidas nas mãos, achou que seria a hora de dar um passo importante e assumir o que boa parte da audiência já sabia há muito tempo: tanto ela quanto a personagem eram lésbicas. O bombástico episódio foi ao ar e os resultados foram aterradores. A série foi cancelada logo no ano seguinte e Ellen caiu no pleno ostracismo, enfrentando anos e anos de muita negatividade e portas fechadas. O ano era 1997. O mesmo ano em que Andrew Cunanan promoveu uma matança pelo país, que poderia ser evitada se as autoridades não tivessem ignorado por tanto tempo o “gay matador de gays”.
No ano seguinte, 1998, a televisão americana começaria a renascer. Foi nesse ano que Sex and the City estreou e embora Stanley (Willie Garson), o amigo gay de Carrie (Sarah Jessica Parker), tenha sido apontado como aquele típico personagem coadjuvante afetado que vira o equilíbrio cômico da protagonista, sua presença na série foi crescendo e importantes questões como heteronormatividade e body image foram levantadas a partir da presença dele. A HBO, enfim, assumiu a liderança e com Six Feet Under, alguns anos depois, fez de David (Michael C. Hall) o primeiro personagem homossexual protagonista de uma série dramática de TV.
Também foi em 1998 que Will & Grace cobriu o outro lado. Will (Eric McCormack) era protagonista de um sitcom e ao lado de Jack (Sean Hayes) representava diversidade dentro da própria esfera da comunidade. Will tinha uma postura heteronormativa (por conta de seus anos de armário) e Jack era direto e claro, cheio de comédia física, mas igualmente real e complexo. A história, inclusive, reivindica o lugar de Will & Grace como primeira série a transmitir um beijo entre dois homens (Jack e Will se beijam de propósito na transmissão ao vivo de uma TV). Mas, foi outra série que também estreou em 1998 que realmente fez isso.
Na segunda temporada de Dawson's Creek, o criador Kevin Williamson apresentou um personagem regular chamado Jack McPhee, que apareceu para rivalizar o coração de Joey (Katie Holmes) com Dawson (James Van Der Beek). Williamson foi esperto e primeiro fez o público gostar de Jack, para só então, num episódio duplo que é um marco na história da TV, tirá-lo do armário. No ano seguinte, Jack deu seu primeiro beijo em um rapaz e esse beijo que é considerado o primeiro beijo gay da televisão americana, porque foi ele, enfim, que partiu de uma narrativa romântica e afetiva. Buffy, no mesmo ano (2000), apresentou a saída do armário de Willow (Alyson Hannigan). O beijo entre ela e a namorada aconteceu um ano depois que o beijo de Dawson's Creek mostrou que aquele não era mais um movimento suicida para uma série.
O Futuro
Em 2008, Ryan Murphy estava prestes a lançar duas séries que seriam duas forças motoras para a representatividade televisiva. Uma delas foi adiante e a outra jamais viu a luz do sol. O plot da série que não ganhou sinal verde do FX pode soar familiar para alguns de vocês: um homem num casamento feliz, com dois filhos, consegue a coragem necessária para se assumir uma mulher transgênero para a família. O elenco tinha nomes como Joseph Fiennes, Carrie Anne-Moss, Sarah Paulson e Jonathan Groff. Era Transparent quase dez anos antes de Transparent ser possível na TV.
A outra série, a que conseguiu sinal verde, era um musical adolescente chamado Glee. E foi Glee o título que mais trabalhou a diversidade em seus enredos, com personagens transgênero, personagens gays, lésbicas, todos no centro dos acontecimentos. O legado do seriado tem força justamente no estabelecimento de que as histórias de amor entre Kurt e Blaine (Chris Colfer e Darren Criss) e Santana e Brittany (Naya Rivera e Heather Morris) tinham tanta importância quanto a história do casal heterossexual vivido por Lea Michele e Cory Monteith. Foram casais que passaram pela mesma dinâmica de idas e vindas, pedidos de casamento e declarações exageradas. O beijo, o desejo, o sexo, a traição, a reconciliação... Tudo era apresentado por uma ótica realmente diversificada, o que fazia com que a série fosse capaz de se comunicar com uma geração inteira de jovens que estão sempre ansiosos por espelhos que lhes tragam algum tipo de conforto.
As representações da família como nos sitcoms dos anos 70 e 80 agora davam lugar ao que se viu em Modern Family, em The Fosters, em The New Normal. A televisão resistiu às mudanças, mas ela também foi o arauto das transformações sensoriais. Foi isso que tornou possível ver o sexo em tantas cores como em Sex Education, o amor em tantas frestas como em Orange is The New Black, a força em tanta dor como em Pose. Primeiro um pequeno passo (a personagem trans feita por uma atriz trans em Orange) até a grande conquista (uma série inteira protagonizada por mulheres trans).
Há quem diga que a arte acompanha as transformações do mundo, mas é bem mais provável que o mundo é que seja transformado por ela.
A partir de agora a busca é pela naturalização. Pelo momento em que uma série com personagens gays ou trans não seja anunciada partindo dessa premissa “chocante”, que uma série com personagens ou protagonistas gays não seja acusada de ser “gay demais”, que o público sinta relacionamentos e perspectivas das experiências queers com o mesmo conforto com que sente as experiências heteros.
É claro que o caminho ainda é longo e precisamos fazer muito mais do que só assistir televisão. Mas, cultura é observação e transformação, é um reflexo de vozes ficcionais pelas quais falamos através. Foi preciso um começo, um meio, para que nos agarrássemos ao futuro que começamos a construir. E essa construção é colorida sim; e é também cheia de orgulho.