Sean Penn e Julia Roberts em Gaslit

Créditos da imagem: Divulgação

Séries e TV

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Gaslit é bem escrita, mas começa exigindo muito de seu espectador

Primeiras impressões da produção do Starz revelam uma minissérie feita para astros onde quem brilha são os coadjuvantes.

Omelete
4 min de leitura
24.04.2022, às 06H00.

No meio do episódio de estreia de Gaslit, um casal, em seu primeiro encontro, se vê no meio de um tópico de conversação que deveria passar longe de qualquer interação casual: política. John Dean (Dan Stevens) é um advogado do partido republicano que numa tradução livre, representa os valores do que para nós é a direita. Mo (Betty Gilpin) é uma aeromoça que se identifica mais com a esquerda, que por lá pode ser correlacionada com o partido democrata. Na mesa, os dois veem essa diferença chegar chutando a porta. De tudo que se vê nessas primeiras impressões da produção do Starz, esse conflito é o único que não é tão dependente de maiores explicações.

Gaslit precisa de muita informação prévia para funcionar, sobretudo, porque – ao menos em seus primeiros momentos – ela não se preocupa em estabelecer uma narrativa central muito fluída. É claro que nenhum roteiro que se preze pode ser expositivo demais, mas para espectadores fora do território norte-americano o escândalo de Watergate pode não ser lá muito popular. A coisa ficou ainda mais delicada quando o criador Robbie Pickering tomou a decisão de explorar mais profundamente os personagens menos lembrados desse engodo; sendo Martha Mitchell o mais importante deles.

Para quem não conhece, vale um resumo: no início da década de 70, durante a campanha de reeleição do Presidente Nixon, o mundo assistiu, em choque, a revelação de um escândalo que usou o que parecia ser um assalto comum para mascarar uma operação de espionagem promovida pela Casa Branca, que pretendia grampear os escritórios do partido democrata e usar as informações para chantagem. Havia um número considerável de homens envolvidos nessa operação e historicamente, os nomes deles permaneceram no centro das atenções. Tanto os nomes dos criminosos quanto dos que se dedicaram a investigar o evento.

Gaslit funciona quase como uma espécie de “justiça poética”. Martha Mitchell (Julia Roberts) era esposa de John Mitchell (Sean Penn), um dos principais advogados que ajudaram no processo de acobertamento do crime. Ela era conhecida por não ter filtros na hora de dizer o que pensava do governo de Nixon ou da política, no geral. Foi por ser casada com John que Martha começou a ter acesso a detalhes do que estava acontecendo, o que a levou a tomar decisões difíceis e passar por represálias violentas. O próprio Nixon, na lendária entrevista com Frost, admitiu que se não fosse pela curiosidade e determinação de Martha, nunca teria havido um Watergate.

Astros X Coadjuvantes

Seguindo a tendência de minisséries baseadas em fatos, são os grandes nomes que atraem a audiência, interessada em ver qual será a caracterização da vez. No caso de Gaslit, Julia Roberts e Sean Penn carregam a responsabilidade. Julia trouxe um sotaque típico dos personagens conservadores que figuram na cultura pop estadunidense. A pouca caracterização física se chocou com o trabalho de Sean Penn, que surge irreconhecível na pele de John Mitchell. Imerso no personagem de uma maneira mais direta – ocasionada, em grande parte, pela caracterização – Sean rouba as cenas de Julia, que parece sofrer um pouco para humanizar Martha.

Como a minissérie foi anunciada como uma chance de dar um lugar de destaque aos que nunca foram reconhecidos pelo acontecimento, faz sentido até que Dan Stevens, Betty Gilpin, entre outros, sejam mais valorizados na estrutura narrativa. O trabalho de Shea Whigham como Gordon Liddy é especialmente impressionante. As características violentas e obcecadas do personagem são dispostas com segurança por Shea; e o roteiro e a direção estudam suas nuances de forma a estabelecerem que é dele o papel de antagonista. O “melhor” é que todos os personagens, sem exceção, parecem querer se convencer de que fazem a coisa certa, ainda que “a coisa certa” seja ilegal. Mais uma vez, as questões partidárias são as mais acessíveis e identificáveis para um público que talvez nem saiba que o Watergate existiu.

Ao menos à primeira vista, Gaslit parece apenas se adequar ao que o mercado já estabeleceu em outras produções do gênero como Miss America ou American Crime Story. Tudo é muito polido, muito bem escrito e embasado. Mas, justamente por ser tão habitual, é que o resultado final não pode ficar na superfície. E é bem possível que não fique... Há um outro grande momento desse primeiro episódio, na cena final, quando Martha se deita ao lado do marido com quem acabou de se entender após uma briga horrível (outra por conta da “boca frouxa” dela) e enquanto acaricia suas costas, percebe documentos importantes na mesa de cabeceira. É impressionante pensar que uma mulher ajudou a desmascarar um crime simplesmente porque seu marido, nem em mil anos, achou que ela iria sequer olhar (quanto mais entender) as evidências que ele manipulava bem ali, no quarto e na cama do casal.

Gaslit estreia neste domingo (24), no Starzplay. Serão 10 episódios, um por semana, até junho. É somente lá que saberemos se Martha Mitchell realmente foi honrada ou se só terminou, de novo, fazendo sombra para quem precisou se esforçar ao pior dos extremos, a fim de escrever o próprio nome na história.

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