Vender uma série para os executivos de um canal não é uma tarefa fácil e quando Amy Sherman-Palladino colocou seu projeto debaixo dos braços, imaginava que não haveria problemas em convencê-los se tudo estivesse extremamente planejado. Com sua ideia completamente desenhada, apresentou tudo para os executivos da CW cheia de confiança. Porém, enquanto falava, foi ficando claro que sua super planejada ideia não tinha tido o efeito esperado. Quanto terminou, lhe perguntaram se ela não teria – quem sabe – uma outra ideia na cabeça. Sabendo que se não viesse com algo na hora perderia sua chance, Amy começou a inventar uma série ali mesmo. A “invenção” começava com: “Eu tenho uma ideia... Mãe e filha tem uma amizade muito intensa e moram numa cidadezinha...”. E sem pestanejar eles disseram: “Ótimo, queremos essa”.
Não sabemos qual era a natureza da primeira ideia de Palladino, mas sem dúvida fugia das diretrizes dramatúrgicas da CW, que naquele início de anos 2000, focava-se especialmente em comédias e séries para adolescentes. A ideia vendida naquela reunião era completamente vaga, mas tinha palavras mágicas: mãe, filha, cidadezinha, elementos clássicos de produções vindouras não só daquele como de tantos outros canais. Naquela tarde, Amy voltou para casa construindo toda sua nova ideia. Em seu caminho, a cidade de Washington Depot, em Connecticut, acabou servindo de modelo para a bizarra Stars Hollow. Tudo estava entrando nos eixos, mesmo depois daquelas circunstâncias. Uma série morreu naquele dia e Gilmore Girls nasceu e teve respeitáveis sete anos de vida.
As Garotas Gilmore
Gilmore Girls estreou em 05 de Outubro de 2000 e seu episódio-piloto foi um dos melhores que a televisão já produziu. Nada de grande eloquência na produção, apenas uma cidade bucólica e um texto ágil que causou até uma certa estranheza no público. Apesar de ter sido vendida como uma série teen, Gilmore Girls tinha diálogos espertos, muito rápidos (o roteiro do piloto, por causa dessa rapidez, tinha o dobro de páginas que o habitual) e com uma quantidade admirável de referências pop. Muito rapidamente, a crítica especializada notou que o programa tinha raízes intelectuais e sagazes nada habituais para o mercado vigente e a série conseguiu 81% de aprovação da imprensa.
Estrelada por Lauren Graham (Lorelai) e Alexis Bledel (Rory), a série começava com mãe e filha comemorando a entrada de Rory numa importante escola particular do estado. A seleção para entrar em Chilton era extremamente severa e uma vaga representava uma chance nas melhores universidades do país. O problema era que a escola também era muito cara e Lorelai era apenas uma gerente de hotelaria que, no passado, tinha decidido sair de casa, abandonar uma vida de riquezas, após engravidar aos 16 anos e frustrar as expectativas de seus pais. O “nó dramático” da história se dá quando Lorelai resolve procurar os pais para pedir o dinheiro para a escola da filha. Eles aceitam, mas impõem uma condição: uma vez por semana, nas sextas-feiras, mãe e filha serão obrigadas a comparecer a um jantar. A reaproximação transforma as dinâmicas da família e aí está o start para o que significa Gilmore Girls.
Nesse primeiro ano, pouco a pouco, o público vai sendo inserido num universo extremamente simples, mas também extremamente complexo. Lorelai deixou a casa dos pais aos 16, teve e criou sua filha sozinha, abdicou de qualquer luxo, mas para tê-la estudando no melhor colégio do estado, pede dinheiro aos pais e é obrigada a voltar ao convívio deles. O problema é que Emily (Kelly Bishop) e Richard (Edward Hermann) são membros ativos de uma sociedade reacionária, aristocrata, que abomina os “modos de vida” de sua herdeira (que já os envergonhara bastante quando engravidou). Obviamente que – de modo irresistível – a reaproximação transforma os dois lados da moeda. Richard e Emily são afetados pela simplicidade, pela leveza que a filha e a neta lhe trazem e elas são afetadas pela inesperada criação desse laço, já que Rory desenvolve um ligação de afeto absoluta com os avós.
O texto de Amy e seu marido Daniel Palladino ajudava muito, isso é um fato. Não só as personalidades da família Gilmore eram muito bem marcadas e interessantes, como tudo que as circundava tinha uma natureza cômica e bizarra. Stars Hollow era uma cidade tomada de hábitos estranhos e moradores incomuns. Porém, Amy e Daniel conseguiram incutir essa ideia de “incomum” sem nunca apelar para o sombrio (que também desrespeitaria as diretrizes do canal). As temporadas eram tomadas de eventos locais absurdos, pessoas estranhas fazendo coisas malucas, mas tudo tinha muita ternura e inocência. Era muito difícil terminar um episódio sem um largo sorriso no rosto.
Sete Anos Para Recordar
Ao contrário dos grandes dramas vigentes na época ou das séries teens onde alguma grande tragédia ou grande intriga viviam acontecendo, Gilmore Girls não era uma produção de grandes "twists". Para conseguir manter interessante uma dramaturgia assim, o texto e os personagens precisam ser muito bons para que o público não sinta falta de reviravoltas mirabolantes. Em seus sete anos no ar, GG fez movimentos maiores de narrativa em pouquíssimas ocasiões e geralmente eles tinham a ver com relacionamentos. Como as protagonistas eram mulheres que valorizavam suas carreiras e independência, mesmo esses relacionamentos nunca caíram no território da cafonice.
Lorelai começou interessando-se por um dos professores da filha, mas foi justamente a necessidade dessa independência que fez com que ela abdicasse dessa relação. Ela ainda tentou com um dos funcionários do pai (que era próximo demais do mundo que ela abandonara) e até casaram-na com Christopher (David Sutcliff), pai de Rory, na questionável sétima temporada. Porém, foi com Luke (Scott Patterson), o rabugento e simplório dono da lanchonete que Lorelai encontrou um porto seguro que não a ameaçasse individualmente. Mesmo que lá no ano 2000, ainda distante do discurso de empoderamento feminino feito hoje massivamente pela mídia, Lorelai já era um grande exemplo de força, segurança e vontade.
Já Rory viveu entre três grandes amores (e todos retornarão para o revival). Dean (Jared Padalecki) foi seu primeiro amor, o príncipe de coração justo que seria o sonho de qualquer menina. Ela o trocou pelo rebelde Jess (Milo Ventimiglia), sobrinho de Luke, que escondia uma intelectualidade sensível por baixo da cara de zangado. Nas últimas temporadas ela se apaixonou pelo milionário Logan (Matt Czuchry), o que lhe causou muitos problemas justamente porque ele era um herdeiro, alguém que a colocava numa perigosa posição de proximidade com os valores e dogmas da alta sociedade. Foi por causa dessa relação que Rory e Lorelai tiveram uma grande briga, que resultou na sexta temporada, considerada controversa por isso, mas essencial para o amadurecimento das personagens.
Quando essa mesma sexta temporada terminou, Amy Sherman entrou numa negociação com a CW para mais dois anos. O canal queria apenas um e numa decisão radical, rompeu com a criadora e entregou a série nas mãos de David Rosenthal, que já tinha escrito alguns episódios. A decisão acabou se revelando nociva, que embora tenha ainda conseguido apresentar bons momentos, perdeu boa parte do seu charme ao focar apenas em relacionamentos amorosos e deixando de lado a rotina da cidade, seus moradores e importantes interações coadjuvantes, como aquelas providas por Paris (Liza Weil), uma arqui-inimiga de Rory que acabou se tornando sua melhor amiga e até mesmo pelos avós. A inacreditável banda de Lane (Keiko Agena) que tinha Sebastian Bach na guitarra, os empregos malucos de Kirk (Sean Gunn), as loucuras culinárias de Sookie (Melissa McCarthy, muito antes de ser uma estrela de cinema)... Tudo foi se perdendo pelo caminho e o sétimo ano não conseguiu dar ao programa um final de honra.
Por tudo isso, a iniciativa da Netflix de trazer a série de volta, depois de quase 10 anos do seu “fim”, trouxe uma imensa expectativa para os fãs. Amy Sherman sempre disse que tinha a última cena (e quatro emblemáticas palavras) em mente desde o começo e agora ela finalmente terá a chance de encerrar a história da forma como ela deveria ter terminado antes. No dia 25 de Novembro, Stars Hollow terá mais quatro histórias para contar - uma para cada estação do ano - e Lorelai, Rory e Emily provavelmente vão nos inundar com mais diálogos rápidos, referências pop sagazes e todo o espírito Gilmore que fez desse programa um dos mais inteligentes e elegantes da TV.
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