Existem duas abordagens diretas para uma adaptação dos quadrinhos. Ou se é fiel ao espírito do material de origem, respeitando os exageros característicos da arte sequencial, ou se opta pelo já clássico “sombrio e realista”, que desconstrói personagens caricatos para torná-los mais acessíveis para o público geral. No caso das séries da Marvel na Netflix, a opção é por ficar em cima do muro. O serviço de streaming ora explora com gosto os superpoderes dos seus heróis (geralmente em cenas envolvendo corredores), ora se esconde em subtramas e conspirações que adiam a entrada em um universo fantástico. Essa escolha fica ainda mais clara em Justiceiro, uma adaptação que sabe o personagem que tem em mãos, mas que se desculpa o tempo todo por ser o que é.
O começo é visceral. Os três primeiros episódios - “3 AM”, “Two Dead Men” e “Kandahar” - fazem a transição entre a vingança de Frank Castle (Jon Bernthal), iniciada na segunda temporada de Demolidor, e a criação de personagens e eventos em torno da sua causa. Justiceiro é visto no auge dos seus “poderes”, de caveira no peito, violentamente eliminando alvo a alvo da sua lista. São cenas bem executadas, exageradas, que exploram sem medo um personagem que é, essencialmente, uma máquina de matar. A transição acontece quando ele acredita ter terminado a missão: não há paz, apenas vazio.
O processo de dar camadas a Frank Castle é construído com atenção. A montagem traduz seu estado psicológico, seus fantasmas do passado, em um ciclo de rejeição ao mundo e a si mesmo. Ele se fecha, quer passar despercebido, até que a sua raiva se faz necessária novamente. Quando volta a ser o Justiceiro, ao som da voz rouca e imperfeita de Tom Waits, a série mostra que compreende seu protagonista, e o aceita. Frank Castle é um homem triste que sabe matar. Não é uma perversão, mas uma necessidade: é preciso fazer a coisa certa e esse é o caminho que ele conhece. Porém, essa conclusão simples não preenche 13 episódios e aos poucos a série vai se erguendo em torno de Castle para justificar a sua existência.
É por isso que os personagens secundários têm uma relação de contraste com o Justiceiro. Micro (Ebon Moss-Bachrach) é o reflexo do mesmo drama, mas com a possibilidade de um final feliz; Billy Russo (Ben Barnes) mostra que aparência e simpatia também podem esconder um monstro; Dinah Madani (Amber Rose Revah) é a policial idealista, americana de origem árabe, que descobre a podridão do sistema em que está inserida; e Lewis Walcott (Daniel Webber) é o filho da guerra, nascido para matar, que não encontra consolo no retorno para casa. Acontece que Frank não é um homem complicado, mas todos ao seu redor são. Eventualmente as tramas paralelas, bem executadas por seus atores, se sobressaem pela necessidade de preencher a narrativa e o personagem-título é quase reduzido ao posto de coadjuvante.
Essa é a principal consequência da abordagem da série idealizada por Steve Lightfoot: seu anti-herói é um problema a ser contornado. Como retratar um homem que, armado, faz justiça com as próprias mãos em um país que já trata massacres como rotina? O recurso de criar um grupo de apoio a veteranos de guerra, liderado por Curtis Hoyle (Jason R. Moore), insere bons argumentos ao diálogo. O mesmo EUA que se orgulha da sua “guerra pela liberdade” também é país que abandona seus soldados quando o conflito termina. Há também um paralelo interessante entre Walcott, que frequenta as reuniões, e Travis Bickle, o personagem de Robert De Niro em Taxi Driver. Ele cria uma realidade suja para poder limpá-la e a série usa sua história para deixar clara a diferença entre Castle e um terrorista.
Quando chega a hora de um inevitável debate sobre o controle armamentista, Justiceiro toma cuidado para não pisar em falso. A questão da Segunda Emenda da Constituição Americana, que assegura desde 1791 o direito dos norte-americanos de portar armas “pela segurança do país”, é debatida calculadamente. De um lado a série mostra o comportamento conservador e extremista de Walcott, que legitima seus atos “pelo bem maior”, de outro revela o senador liberal, que idealiza um mundo sem armas, mas evita qualquer contato com a realidade. No centro estão Karen Page (Deborah Ann Woll), represente do portador de armas sensato, e Frank Castle, a milícia de um homem só. É uma mistura de situações que evita conclusões e, consequentemente, o tiro do pé de condenar o vilão e o anti-herói pelo mesmo crime.
Outro cuidado que a série toma é de não glamourizar a violência. Salvo no início da temporada, quando Frank ainda não foi desconstruído em busca de respostas, todo ato de guerra é feio, sujo e é mantido até gerar desconforto. Não há uma grande “cena de corredor” na temporada, mas muitas tentativas que esbarram na constatação de que o que o Justiceiro faz não pode ser legal e inconsequente. Existe a vontade de que ele mostre do que é capaz, mas também a resistência de transformar uma habilidade de destruição tão próxima da realidade em um superpoder. Os grunhidos de Bernthal deixam clara a condição animalesca do personagem, mesmo em momentos de necessária frieza tática. Ele sofre com cada bala (ainda que desvie de muitas), é torturado, levado ao limite e renasce em um momento de cólera para mostrar que não é exemplo para ninguém.
Nessa conta, a série poderia ter facilmente criado um arco para essa versão de Frank Castle em oito episódios. Ainda estariam lá o exorbitante poder de fogo, as angústias do homem atormentado pela perda da família, e o eventual questionamento sobre da sua existência do no mundo real. No prolongamento dessa narrativa, o personagem se distancia da sua essência e a série perde ritmo com situações mal aproveitadas, como um triângulo amoroso/familiar com Micro, ou um proto romance com Karen Page. Mesmo bons conceitos como o de Walcott duram mais do que o necessário e servem apenas como argumento, não para o desfecho da temporada. E enquanto todos os personagens terminam diferentes de como começaram, Frank Castle fica na mesma conclusão simples dos episódios iniciais (e da segunda temporada de Demolidor).
A Netflix entende que um homem altamente armado é diferente de um ninja cego, uma mulher com superforça, um homem indestrutível e, claro, um honorável Punho de Ferro. A presença de Castle nesse universo exige muitas voltas, muitas explicações, mas esse é um personagem que não funciona em cima do muro. É quando a série descobre que não pode se divertir com o que é dentro do contexto realista em que está inserida (o que John Wick, por exemplo, consegue fazer com seus excessos). Nessa versão, Justiceiro pode matar, mas precisa pedir desculpas depois.