Em 07 de abril de 2011, a escola municipal Tasso da Silveira presenciou um massacre sem precedentes no Brasil, quando um atirador matou treze pessoas, incluindo ele mesmo. Em cerca de 15 minutos, mais de 30 disparos foram dados. 24 estudantes foram baleados e 12 faleceram, dentre eles, 10 meninas.
O caso é foco da série Massacre na escola - A tragédia das meninas de Realengo, da HBO Max, que busca explorar o acontecimento para cobrar novas medidas da sociedade como um todo. O Omelete conversou com Bianca Lenti, produtora e diretora do documentário, e com Patricio Díaz, gerente sênior de conteúdo de produções de não-ficção da Warner Bros Discovery no Brasil, para entender quão impactante é realizar uma produção de um assunto tão difícil.
Como foi a experiência de fazer uma série como essa? Ela muda quem a produz? Como?
Bianca Lenti: Produzir uma série como essa é fazer uma imersão em um universo muito cruel, principalmente para quem tem filhos, eu acho. Enquanto sociedade, estamos vivendo um momento com discurso de ódio radicalizando, diálogo sumindo, e essa série tem todas essas camadas de violência de ódio por trás desse crime. A série tá aí pra explicar por que acontecem massacres em escolas, então foi muito duro fazer essa imersão nesses depoimentos, nessas conversas com os familiares, com os sobreviventes. Até estar com eles, ouvimos muita coisa.
A nossa pesquisadora de personagem, Carolina Ribas, sempre me mandava áudios falando “Bianca, eu acabei de conversar com fulano. Preciso tomar um banho quente e te retorno pra gente trocar ideia sobre o que eu acabei de ouvir”, então, assim, foi preciso ter um nível de delicadeza e sensibilidade muito grande para que as pessoas confiassem na gente, confiassem na nossa abordagem, que é uma abordagem respeitosa, cuidadosa e que, de certa forma, pretende prestar um serviço para a sociedade, e não explorar a experiência dolorida que elas tiveram. Por exemplo, no último dia 20 de abril, houve uma série de ameaças a ataques de escolas no Brasil, e minhas filhas, que respiraram o assunto durante um ano, nenhuma delas queria ir pra escola. E era um assunto que elas estavam ouvindo falar por osmose, mas que atinge todo mundo.
Vocês acreditam que os fóruns on-line podem contribuir pra essas tragédias?
Patricio Diaz: Sim, as comunidades on-line da deep weeb são os lugares iniciais onde isso nasce, e estes fóruns, como os Chans, são citados no documentário. Na série em si, são citados esses fóruns que incitam discurso de ódio, quase sempre apontado às mulheres, e parte para outros lugares.
Bianca Lenti: Eu acho que a série pode ser associada ao gênero True Crime, porque ela parte de um crime, mas entendemos que o Massacre na Escola é uma série documental. Então, a partir do massacre de Realengo, que foi o mais letal caso que já aconteceu numa escola brasileira, partimos para discutir as muitas motivações por trás desse crime e, sim, alguns desses jovens são seduzidos em sites de jogos on-line, e depois são levados para esses Chans, fóruns mais ocultos na internet. Primeiro eles estavam na deep web, mas hoje já estão na internet normal, como no Discord, por exemplo. E são fóruns em que discursos extremistas são muito presentes, como homofóbicos, racistas, mas, principalmente discursos misóginos, então entendemos que essas comunidades têm influenciado a ação desses atiradores, e só de planejar em cometer um crime como este, eles estão enquadrados numa categoria de terrorista, e temos visto o discurso de ódio crescendo nos últimos anos, então isso acabou, sim, chegando nos números que a gente tem hoje. De seis massacres nos últimos meses. Acho, sim, que a propagação do discurso de ódio teve uma relevância nesses ataques.
A questão do feminicídio não foi tão abordada pela mídia na época do massacre, mas a série escolheu essa abordagem. Você acredita que hoje a gente consegue enxergar essa motivação de maneira mais clara?
Bianca Lenti: Eu acho que na época em que aconteceu, ficou todo mundo tão surpreso, por ser um crime tão absurdo e tão novo, que esse detalhe – que não é um detalhe, né? – mas essa informação acabou sendo suprimida pela necessidade que a imprensa tinha de traçar o perfil do atirador, então muito se falou sobre o criminoso e quem ele era, sobre suas origens e sobre o que ele tinha feito e o que tinha motivado ele, e pouco se falou das vítimas. Então, esse silenciamento, esse fato que deveria ter sido preponderante na cobertura, acabou não acontecendo, mas, quando olhamos hoje para esses fóruns e quando olhamos para as cartas deixadas pelo atirador, pelos materiais deixados por ele, pelas anotações, pelos vídeos, por tudo que se tem, que foi recolhido pela investigação da polícia, entendemos que foi um crime de gênero. Sem dúvida foi um crime de gênero. Seja porque ele entrou disposto a matar as meninas, seja porque ele está inserido em um caldo social e cultural que permite que as mulheres sejam o alvo mais fácil. Seja por um motivo ou por outro, estamos diante de um crime de gênero, sim. Mas era tudo muito novo.
Até pelo fato da carta que ele deixou citar a castidade, a pureza, o que mostra uma aversão exagerada ao sexo e à mulher. E aí, algo interessante, é que vocês decidiram não citar o nome do assassino. Como vocês acham que essa conduta ajuda a evitar a violência?
Patricio Diaz: Achamos que a série foi muito adiantada para a época, e essa exceção de não mencionar o nome, nem mostrar o rosto do assassino partiu do começo e foi uma decisão que a equipe abraçou. Muito porque os autores desses massacres procuram reconhecimento, nessas comunidades, nesses fóruns que estávamos comentando agora, e também porque achávamos que, editorialmente, era importante trazer pro debate outros elementos da história que contribuem mais para esclarecer os motivos, do que talvez fazer um perfil específico de um autor ou outro que, numa análise geral, acabam se parecendo e tendo similaridades, como diversos autores de diversos massacres. Como, por exemplo, estávamos falando dessas comunidades on-line dos Chans e dos sites de jogos e de toda essa vida que existe na internet e, numa análise superficial, parece que estamos falando de Facebook e Twitter, quando sabemos que, na verdade, as crianças e adolescentes não habitam esse mesmo mundo on-line que nós e que, sobretudo, esses adolescentes e crianças que estão inseridos nessas comunidades estão ainda mais distantes dessa internet que conhecemos. Por isso, o documentário foi muito feliz em trazer isso para a superfície. Desvendar esse mundo que achamos que entendemos, mas não sabemos como ele realmente é, onde está e como se apresenta. A realidade é que esses crimes nascem em outros lugares e pareceu mais importante trazer um detalhe ou outro sobre o criminoso.
Qual o retorno que vocês esperam do público e o que vocês acham que a série traz de novidade para o True Crime ou documentário nacional?
Bianca Lenti: Queremos que as pessoas entendam que esse é um fenômeno que não é “se” ele vai acontecer novamente, mas “quando” vai acontecer, pra que a gente entenda que essa é uma responsabilidade nossa enquanto sociedade. Quais cobranças temos que fazer nessas plataformas pra regulamentar esse tipo de conteúdo? Não são conteúdos proibidos para menores e são conteúdos criminosos, que estimulam, fazem apologia ao crime. Até quando vamos fechar os nossos olhos para essa nossa responsabilidade enquanto sociedade? Não devemos fiscalizar apenas o que nossos filhos estão consumindo nos seus quartos. Isso é uma responsabilidade nossa enquanto sociedade. E que masculinidade é essa que precisa ser perseguida? Essa masculinidade violenta e bárbara? Por que esses meninos são excluídos e acabam sendo escutados por aliciadores porque não estão sendo escutados em outros lugares? Por que a gente não debate mais sobre essa masculinidade que leva a tragédias como essa? É uma discussão que vai muito além do crime em si. É um alerta geral. A sociedade precisa se mobilizar e falar sobre isso.
Massacre na escola - A tragédia das meninas de Realengo estreia em 09 de julho na HBO Max e na HBO.