Pode parecer muito louco, para a geração que cresceu depois dos anos 2000, imaginar uma televisão mundial sem nenhuma diversidade. Do mesmo jeito que um dia já vivemos sem internet e sem celulares, também vivemos uma época em que a representatividade na TV era nula. E isso com relação a tudo, aliás. Entre os anos 50 e 80, quando a televisão foi se tornando comum nas casas das pessoas, a dramaturgia funcionava a partir de códigos imutáveis: todos os personagens eram héteros, todas as loiras eram burras, a maioria dos atores e atrizes eram magros (e os que não eram, assumiram vilões), todas as mulheres se submetiam aos homens ou precisavam ser salvas por eles.
A TV – que supostamente deveria só refletir a vida em sociedade – estava ajudando a perpetuar impressões que levariam anos para serem superadas. Como a homossexualidade seria naturalizada se ela não aparecia nos produtos de mídia que tinham um verdadeiro alcance? A própria palavra “preconceito” vem do que se julga antes de sequer tomar conhecimento. Já que tantas pessoas se recusavam a conhecer melhor aqueles que eram diferentes e que estavam próximos, a televisão poderia ser uma boa estratégia para tornar esse desbravamento possível.
- Mas, eu posso trocar de canal. Claro, pode. Mas, a mesma premissa que cria a empatia pelos herois de uma trama, pode ser usada a favor da representação da diversidade. A TV, por muitos anos, não queria “perder tempo” tentando fazer a audiência gostar de personagens gays. Veja aqui mesmo no Brasil. Depois de uma série de personagens gays que serviam às tramas como predadores e chantagistas, quando chegou a década de 70, eles viraram assassinos. Tanto em O Rebu (1975) quanto em O Astro (1978), a resolução de crimes notórios ficou por conta de relações homossexuais vulgarizadas. Com uma ajudinha do cinema americano, gays e transexuais eram somente vigaristas, mentirosos, viciados e até assassinos em série.
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Imagine, então, ligar a televisão no decorrer dessas décadas e não encontrar nada, absolutamente nada, que fosse ajudar uma pessoa gay a ter alguma justa representação. Para adolescentes daquela época, a existência homossexual não permitia o amor, era motivo de chacota, de repúdio, estava ligada ao imoral e ao ilegal. Se os conflitos imensos já eram incomensuráveis, a ficção não oferecia nenhum tipo de conforto. Ser gay era ruim em casa, na escola, no cinema, na TV... Era um mundo sem saída em que a única opção que garantia a sobrevivência era o silêncio.
1971
O primeiro personagem abertamente gay da televisão americana é creditado à série All in the Family, da CBS, que teve 9 temporadas e ilustrava o típico (e superestimado) american way of life. A série acompanhava a rotina de uma família liderada pelo conservador Archie (Carroll O'Connor), que era representado como um ignorante, estúpido e retrógrado membro da classe trabalhadora. Ele tinha um genro chamado Michael (Rob Reiner), que seguia ideias liberais. Os conflitos entre os dois se tornaram o eixo central da produção, que aproveitou para falar pela primeira vez de uma série de assuntos considerados inomináveis na TV.
Se esse plot te levou a pensar em outros títulos, isso não é mera coincidência. Até mesmo na clássica Família Dinossauros (1991), a ideia de um patriarca conservador sendo desafiado por um personagem mais jovem foi reprisada. Contudo, em All in the Family palavras comuns no dia a dia dos americanos – como fag (viado) – começaram a pipocar na tela e chocar os espectadores. Para sustentar tudo e manter a série de pé, os roteiristas eram espertos e colocavam os maiores pontos de polêmica em coadjuvantes transitórios, que jamais seriam vistos novamente (estratégia usada pelas redes de televisão até os anos 90). No sitcom, o genro liberal de Archie iria receber um amigo que a família toda achava que era gay. Michael, o genro, insistia que os trejeitos do amigo não eram suficientes para rotulá-lo como tal. Após diversas discussões, Archie resolve desabafar com o amigo Steve (Phillip Carey) e descobre, estupefato, que na verdade o próprio Steve, que nunca havia dado nenhum “sinal”, é que era gay.
O nó que os roteiristas deram na cabeça de Archie foi o mesmo nó que parte da audiência viu sendo atado em si mesma. A outra parte sentiu como se o episódio fosse uma ameaça direta: “Então, agora eles podem estar entre nós sem a gente nem perceber?”. Era como se uma raça alienígena estivesse espreitando para possuir pessoas como em Invasores de Corpos (1978). Esse também foi o momento em que a heteronormatividade foi se tornando uma espécie de “escudo” dentro da própria comunidade gay.
2001
30 anos depois, e All in the Family tinha deixado esse eco: nem todo gay precisa parecer gay. Ao invés da questão toda ter ajudado a somar, tinha piorado o processo de segregação. Os gays afeminados que lutaram intensamente para conquistar direitos entre as décadas de 60 e 90, continuaram sendo retratados como alívios cômicos ou melhores amigos/conselheiros, enquanto os gays heteronormativos foram ganhando seu espaço na ficção. Kevin Williamson conseguiu o primeiro beijo com o coadjuvante Jack (Keer Smith), em Dawson's Creek (1998). Mas, apesar do grande passo, o próprio Jack dizia em um outro episódio que não tinha atração por homens afeminados: “Não dá tesão quando é óbvio demais”.
Curiosamente, foi no mês do Orgulho, em Junho de 2001, que estreou na HBO a série Six Feet Under (A Sete Palmos), que apesar de ter um homossexual hetenormativo na trama, tinha um diferencial importante: ele era um protagonista. David (Michael C. Hall) foi criado numa família extremamente religiosa e negacionista, mas com a morte do pai, ele se tornou o herdeiro do negócio funerário ao lado do irmão e ganhou um pouco mais de confiança para sair do armário. Assim, durante a primeira temporada, o personagem ofereceu sequências inteligentíssimas sobre como esse processo podia ser devastador e sobre como a autoaceitação é ainda mais difícil de conquistar.
Contudo, assim como Kevin Williamson fez com o Jack, Alan Ball (criador de A Sete Palmos e também assumidamente gay) deu a David uma vida imageticamente semi-pornográfica. O namorado, Keith (Mathew St.Patrick), era um policial durão com bigode e cheio de músculos. Todos os interesses românticos dos dois, as baladas onde iam, as aventuras que tinham, eram pautadas pela ideia de um catálogo sexual de Chi Chi LaRue: homens sempre musculosos, heteronormativos e “desinfetados”. Os que não eram, o roteiro ridicularizava.
É claro que a realidade hipersexualizada de David e Keith não era mentirosa e nem diminuía o amor que tinham um pelo outro. Mas, os registros físicos eram sempre tão intensos, que os sentimentos acabavam eclipsados. O caso só não era grave, porque, de fato, nenhum outro casal da série era retratado de uma maneira diferente. Nate (Peter Krause) e Brenda (Rachel Griffiths), por exemplo, tinham uma relação tão sexualizada e problemática quanto a dos outros dois (e em alguns aspectos até pior). Por esse ângulo, Alan Ball acabou sendo pioneiro numa coisa que Ryan Murphy veio a fazer alguns anos depois, em Glee (2009). Casais heterossexuais e homossexuais precisam ter o mesmo tratamento dentro de uma narrativa.
2021
Embora Glee tenha oferecido ao público uma narrativa romântica entre Blaine (Darren Criss) e Kurt (Chris Colfer), que era organizada como qualquer outra relação romântica dentro de uma série de TV, eles não eram protagonistas. Ainda tínhamos ali as idas e vindas, noivado, casamento, tudo funcionando exatamente como com os protagonistas Rachel (Lea Michele) e Finn (Cory Monteith). Mas, o casal protagonista ainda tinha a liderança, a prioridade; o que não quer dizer que Murphy não tenha conseguido um grande avanço ao escolher a representação terna da homoafetividade.
Porém, estamos vivendo um momento ainda mais desbravador. Um bom exemplo disso é Love, Victor (2020), uma série derivada do filme Love, Simon (2018), que estreou trazendo um protagonista gay, latino, com uma família conservadora e que depois de sair do armário precisava lidar com algo que algumas séries importantes através da história esqueceram de retratar: o amor. Assim como na ótima Sex Education (2019), Victor (Michael Cimino) tem um melhor amigo hetero, o que já é uma inversão bem-vinda no mercado. Embora a série tenha que ter se apoiado na narrativa da saída do armário, o otimismo e a civilidade nunca foram perdidas de vista.
Agora, na temporada 2021, Victor lidou com o acolhimento do pai (o que Ryan Murphy também fez muito bem em Glee) e com a rejeição da mãe (o que também não é muito comum na TV). Victor passou por todos os processos de flerte, conquista, primeiro beijo, primeiro amor, pelo viés da ternura, como se aquela fosse uma dessas comédias românticas confortáveis que nos deixam felizes quando saímos do cinema (mas que nunca têm protagonistas gays). E o mais importante: ainda que o protagonista seja heterormativo porque estava no armário, esse ano a série não negligenciou esse tópico tão precioso. Victor está dividido e em um dos lados está Rahim (Anthony Keyvan), afeminado, solar, ávido e muçulmano. Mal podemos esperar pela temporada 3.
Entre All in the Family e Love, Victor já se passaram 50 anos. E ainda aqui, 50 anos depois, estamos celebrando o Mês do Orgulho com estatísticas. Bom, fica fácil entender quando uma série promissora e corajosa como Manhãs de Setembro vai para o ar protagonizada por transexuais, num país que é um dos que mais mata a letra T do LGBTQI+. A arte tem um papel transformador e não só expositor. A Cassandra de Liniker mora na periferia, tem um namorado casado, se vira como pode, canta na noite, se abriga na comunidade... Ela é real. Assim como a hipersexualização em A Sete Palmos era real, como o amor romântico em Love, Victor é real, como são reais esses 50 anos de busca por um espaço.
Por ano (e com variações, é claro), mais de 90 pilotos são encomendados pelas redes e streamings dos EUA. Noventa! Você que está lendo esse texto teria a audácia de chutar quantos desses têm narrativas homoafetivas como parte central da trama? A diversidade, a representação LGBTQI+ não está e nem nunca esteve saturada. Ela apenas incomoda mais que nunca aqueles que preferem a TV do passado: branca, heteronormativa, misógina e, mais que tudo, insincera.
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