Desde o lançamento de Cidade de Deus, em 2002, a forma de como contar histórias sobre o crime nas favelas e pessoas marginalizadas ganhou um novo status. A qualidade da obra de Fernando Meirelles, que recebeu quatro indicações ao Oscar, virou referência no mercado nacional e internacional, sendo considerado um dos grandes filmes do cinema brasileiro. É por este retrospecto que a experiência de assistir a O Jogo que Mudou a História, nova série do Globoplay, é tão impactante.
Idealizada por José Junior, do grupo cultural AfroReggae, a série conta a história real da criação das facções criminosas do Rio de Janeiro, ainda no fim dos anos 1970. Dividindo a narrativa entre 12 protagonistas, a trama navega pela dura realidade dos presídios estaduais e a situação precária das favelas às margens da sociedade, nas quais se envolver com o crime parece ser a única solução para mudar as vidas de centenas de famílias.
O primeiro episódio da série dá logo o tom do que o espectador deve esperar de O Jogo Que Mudou a História. Situada quase que inteiramente no Instituto Penal Cândido Mendes, antigo presídio localizado na Ilha do Governador, no litoral fluminense, a narrativa não apenas introduz alguns dos principais rostos que terão destaque ao longo da trama, como escancara a precariedade do sistema carcerário brasileiro, que segue insalubre até os dias de hoje.
De um lado, o local é dominado pela falange Jacaré; do outro, o grupo intitulado Turma do Fundão tenta assumir o comando do presídio. O conflito entre as duas culminaria em um fatídico jogo de futebol que daria início à guerra entre facções que até hoje causa mortes de inocentes nas ruas e favelas do Rio de Janeiro. Para mostrar a realidade cruel dos envolvidos nestes eventos, José Junior se baseou em relatos de antigos presidiários, carcereiros e até bandidos da vida real para ir além dos dados encontrados no Google - e alguns deles fazem parte do elenco da série.
Entre os presidiários do Instituto se destacam bandidos “raiz”, como são chamados os assaltantes de bancos e sequestradores, e presos políticos, militantes de esquerda trancafiados pelo governo militar sob a eterna justificativa da ameaça comunista. Todos eles, no entanto, recebem o mesmo tratamento dos carcereiros: comida estragada, surras sem motivo e a sensação de que a única lei na cadeia é a de que não existem leis. Não por acaso, o local ficou notoriamente conhecido como “Caldeirão do Inferno”.
E a dura realidade do sistema carcerário é exposta de forma gráfica logo no piloto. Com a crescente tensão entre diferentes facções na cadeia e os policiais que a dominam, uma guerra eclode e deixa um rastro de morte e sangue pelos escuros corredores do instituto. A violência é tanta que o resultado é a decapitação de um líder rival, cuja cabeça decepada é exposta na frente de todos, apenas para registrar quem é que manda ali.
Em outro momento, um jovem de classe média sofre um estupro coletivo em uma cena que certamente deve causar gatilhos. Tudo sobre este início de O Jogo que Mudou a História é chocante, e pensar que isso ainda é a realidade de alguns presídios nacionais torna a experiência ainda mais perturbadora. Contudo, a série faz uso da violência gratuita apenas para chocar; a criação de José Junior coloca o dedo na ferida de vários problemas sociais do país e de como a população periférica sofre quando fica à mercê do Estado. Neste ambiente bélico e insalubre dos nossos presídios, até mesmo o mais são dos humanos pode encontrar o seu limite.
O trabalho do elenco principal também eleva a qualidade da produção. Nomes como Babu Santana, Ravel Andrade, Jonathan Azevedo e Raphael Logam dão vida a personagens que transitam entre o cruel e o humano, expondo física e mentalmente como a difícil realidade que viveram transformou para sempre as suas vidas.
Os dois primeiros episódios de O Jogo que Mudou a História já estão disponíveis no Globoplay.