Poucas vozes são tão cristalinas no imaginário popular brasileiro quanto a de Silvio Santos. Além da projeção vocal encorpada, o dono de SBT, Tele Sena, Jequiti e de uma fortuna que ultrapassa a marca dos R$7 bilhões também guarda alguns dos vícios de comunicação mais icônicos da TV nacional - do "m" ao final de palavras com vogal aos bordões "ma, oe" ou "ai, ai, ai, ui, ui". Na telinha há 60 anos, o ex-vendedor ambulante quase viu seu lugar como ícone das salas de estar do país ameaçado em 1988. Foi quando uma crise de saúde colocou em risco a mesma voz que o levou ao topo do entretenimento nacional, forçando-o a se afastar do olhar público por meses e, eventualmente, motivando-o a se aventurar na política.
É esse período de vulnerabilidade que O Rei da TV, a primeira série de TV biográfica (não autorizada) sobre Silvio, usa para quebrar a mística de um ícone e humanizar a trajetória de sucesso do mais célebre "self-made man" brasileiro. Com direção geral de Marcus Baldini (Bruna Surfistinha), trabalhando ao lado de Carol Minêm (Macho Macho Man) e Julia Jordão (O Negócio), a produção da Gullane Entretenimento para o Star+ divide em três a persona do empresário e apresentador: parte do pânico que se instaura em um Silvio mais maduro (José Rubens Chachá), com o risco de perder a voz, para passar pela infância do jovem judeu Senor Abravanel (Guilherme Reis) e seu ingresso na indústria do entretenimento já na maioridade (Mariano Mattos Martins) — com as consolidações de sua persona e de seu nome de palco. Nos três episódios da série que o Omelete conferiu antecipadamente, revela-se um retrato reverente, mas ainda assim ácido, de uma estrela.
Em "A Geléia É Minha", primeiro dos oito capítulos que compõem esse ano de estreia, Chachá surge com os famosos cabelos cor de acaju, o largo sorriso e os tiques cênicos de Silvio, mas logo abre caminho para que Reis incorpore o jovem e ainda cru Senor em sua jornada de descoberta de talentos. Do contraste entre o ícone feito e o garoto que um dia seria rei, essa abertura tira seu maior trunfo, porque ilustra rápida e instintivamente ambas as facetas que sustentam a série: o hábil comunicador e o empresário voraz. Quando está à frente das câmeras, a versão veterana do personagem é excêntrica e carismática, mas quando trata dos problemas do SBT nos bastidores, é ríspida e egocêntrica. Em um cabo de guerra interno com Gugu Liberato (Paulo Nigro), vemos a objetividade do empresário Senor perder para o estrelismo do apresentador Silvio. E, quando viajamos no tempo para ver a jornada do jovem Senor como camelô, vemos essa dualidade espelhada na traição a um mentor das ruas (Augusto Madeira), que desemboca no nascimento de Silvio.
O estudo de personagem se aprofunda em "Canta, Peru", que pula do cabo de guerra entre o apresentador, Gugu e outras lideranças do SBT, para seu ingresso no rádio brasileiro, em 1950. Nessa linha temporal pregressa, acompanhamos não só como o futuro Homem do Baú tornou-se protegido de Manoel de Nóbrega, como também como ele aplicou um golpe em seu mentor para tornar-se, justamente, o Homem do Baú. Ou melhor: para tornar-se sócio do então mequetrefe Baú da Felicidade — que viria a ser a pedra fundamental do bilionário Grupo Silvio Santos. Martins encarna essa fase do personagem fazendo com destreza a ponte entre o olhar sonhador de Reis e a impavidez colossal de Chachá; tudo com o adicional de uma irresistível energia frenética. Mais uma vez, também, a exaltação da série ao carisma nato do apresentador encontra como rédeas o retrato frio de deslizes éticos em benefício próprio. Agora, ressaltados com uma participação cômica de Leandro Ramos.
Por fim, é reservado ao episódio "O Rei dos Domingos" o ingresso de Silvio na TV brasileira, reforçando ainda mais a rivalidade oitentista do apresentador com Gugu (um símbolo de uma possível obsolescência que o incomodava e um lembrete do que ele mesmo havia feito com um mentor) e destacando grandes chagas dos bastidores da telinha no Brasil. Nesse recorte, especificamente, o sexismo e o racismo dos anos 1960 são colocados explicitamente na voz de Silvio, que ao assumir os domingos da antiga TV Paulista (hoje, a Rede Globo em São Paulo) imediatamente subscreve aos moldes preconceituosos da indústria da época — incluindo aí a negação, no meio artístico, de seu primeiro casamento.
Tudo isso vem embalado em um roteiro divertido e repleto de referências, assinado por Mikael de Albuquerque, com colaboração de André Barcinski, Ricardo Grynszpan, Henrique Melhado e Marcela Macedo. O Rei da TV ainda traz uma direção de arte primorosa, capaz de recriar com simplicidade, mas enorme veracidade, tanto os cenários de época necessários para ancorar a história como também os bastidores televisivos cheios de nostalgia para colori-la. Conforme se desenrola em tela, a produção brinda o espectador com aparições especiais de figuras carimbadas da cultura pop nacional, sejam elas com nome e sobrenome (como é o caso de Sergio Mallandro, vivido por Gui Santana) ou sob um pseudônimo (como acontece com o chefão da Globo, Boni, que se torna Rossi).
Com ares de superprodução e um bom equilíbrio entre homenagem e crítica, navegando bem a linha entre entretenimento e informação, O Rei da TV já pode, mesmo que em só três episódios, dar as mãos a produções como Hit Parade, Bingo - O Rei das Manhãs e Hebe - A Estrela do Brasil no ról da da cultura pop brasileira que observa com sapiência a si própria. Em uma de suas cenas mais virtuosas na série, Chachá diverte e constrange igualmente ao protagonizar uma tentativa de intimidação torta de Silvio contra Gugu. Trata-se de um exemplo perfeito do deleite que é ver ícones de nossa própria terra à serviço da liberdade criativa da ficção. Como diria o próprio Abravanel, é: "Ma... Ma... Ma... Muito bom".