O fandom do Twitter é um fenômeno engraçado. Bastam alguns minutos na rede social para encontrar fãs brigando para decidir quem pode ou não gostar de algo ou até falar de uma franquia baseando-se em opiniões isoladas sobre algumas obras. Esses dias, por exemplo, tem rolado um movimento contra Obi-Wan Kenobi, nova série do universo Star Wars, que seria “boba demais” por causa de cenas… Bem, bobas, como a captura da pequena Leia (Vivien Lyra Blair) por alguns capangas desastrados no primeiro episódio ou o momento em que a princesa se esconde debaixo do sobretudo de Ben (Ewan McGregor) para escapar sem ser vista da base dos inquisidores. A discussão das redes chegou ao IMDb e ao Rotten Tomatoes, onde vários usuários têm deixado diversas avaliações desmerecendo Obi-Wan Kenobi por causa de seus momentos leves.
Seria ingênuo achar que muitas dessas críticas negativas a Obi-Wan Kenobi e Ms. Marvel, da qual falo mais abaixo, não têm, como base, opiniões racistas e machistas, direcionados ao elenco e à suposta agenda progressista da Disney. Isso já ficou claro nas últimas semanas, quando Moses Ingram, a Terceira Irmã da produção da Lucasfilm, foi alvo de inúmeras ofensas por causa da cor de sua pele. Star Wars, Star Trek, Marvel, DC e outras grandes marcas da cultura pop sempre foram pautadas na pluralidade e respeito. Mascarar preconceitos antiquados como opinião sobre entretenimento é uma covardia e um desrespeito com tudo e todos que essas franquias representam. Intolerância não é crítica artística e, honestamente, não preciso explicar por que esse tipo de comentário nem merece resposta - especialmente de outro homem cis branco -, o foco deste texto é outro. Aqui, pretendo falar sobre os que reconhecem o engajamento social como positivo, mas reclamam de falta de seriedade como ausência de mérito.
Um dos tuítes com que me deparei destaca justamente a tal fuga de sobretudo do quarto capítulo de Obi-Wan Kenobi, ironizando o fato de ela ser “uma produção séria e não uma paródia”, como se a cena destoasse do universo de George Lucas. Acontece, no entanto, que a franquia do Criador nunca se opôs a momentos bobos - ela, aliás, abraça a bobeira com frequência.
pictured: serious production (not parody) pic.twitter.com/NW3PaSSSpb
— Jay Exci 🏳️⚧️ (@JayExci) June 12, 2022
O primeiro exemplo da bobeira que permeia Star Wars vem logo em Uma Nova Esperança, de 1977, quando Luke (Mark Hamill) e Han (Harrison Ford) se infiltram na Estrela da Morte. Em determinada cena, vemos um stormtrooper bater a cabeça na porta. Embora esse “erro” tenha passado batida por Lucas durante as filmagens, o cineasta incorporou o tropeço e, em 2004, quando a produção ganhou sua Edição Especial, adicionou um som de batida à sequência, algo que deu ainda mais personalidade ao longa. Minutos depois, no mesmo filme, Han Solo, ao tentar perseguir alguns soldados imperiais, é encurralado por uma verdadeira horda de stormtroopers, de quem corre de forma relativamente cômica.
Momentos espirituosos como esses não são, obviamente, exclusividade do Episódio IV. Aliás, eles estão presentes em todos os filmes da franquia em que o Criador esteve envolvido. Mesmo O Império Contra-Ataca, o mais pessimista e sombrio entre os Star Wars, traz diversas cenas em que um C-3PO (Anthony Daniels) despedaçado é carregado como uma mochila viva por Chewbacca (Peter Mayhew) enquanto balança os braços desesperado. Conforme o próprio Lucas falou à Rolling Stone lá em 1977 (em entrevista republicada no Brasil em maio de 2007) - e em várias ocasiões depois disso -, Star Wars sempre foi idealizada como uma fantasia espacial inocente. Mesmo que sua trama principal ao longo de seis capítulos seja a queda e eventual redenção do nome Skywalker, a franquia nunca perdeu de vista seu público-alvo infanto-juvenil, adotando cenas leves e, algumas vezes, bobas como forma de reforçar esse comprometimento.
Reclamar que uma sequência ou outra de Star Wars não é “séria o bastante” é tão absurdo quanto dizer que a franquia não é realista. Não, nenhum soldado bem treinado deixaria um desconhecido de sobretudo contrabandear uma prisioneira para fora de uma base militar na vida real, mas nossa realidade também não permite, por exemplo, explosões barulhentas e cheias de fogo no vácuo do espaço ou - pasmem - mover objetos com a tal da Força. O objetivo das aventuras de Luke e companhia nunca foi retratar a realidade de forma objetiva, mas sim divertir e inspirar. Mesmo com suas tragédias e abundância de membros decepados, Star Wars segue sendo, em seu cerne, uma franquia de entretenimento infanto-juvenil, cuja bobeira é tão importante quanto os laços familiares dos Skywalker.
A vida “colorida demais” de Kamala Khan
A mesma dificuldade de se entregar à suspensão da descrença que assola alguns espectadores de Obi-Wan Kenobi parece atingir o público de outra série do Disney+: Ms. Marvel. Assim como a minissérie estrelada por Ewan McGregor, o novo capítulo do MCU tem recebido algumas avaliações negativas no IMDb e no Rotten Tomatoes por ser “cômica demais”, “muito colorida” e “para crianças”, críticas que ignoram o fato de a produção ser, de fato, uma comédia adolescente. Nos quadrinhos, Kamala é uma jovem ácida, inteligente e extremamente divertida, características que têm sido interpretadas à perfeição por Iman Vellani.
Como leitor assíduo dos gibis da Ms. Marvel, é difícil para mim levar a sério esses reviews amargos, claramente escritos por pessoas que precisam que as produções que consomem as validem como adultas - o que não é o caso e nem o objetivo de Ms. Marvel. Assim como as HQs da personagem, a nova série foi pensada como uma história de amadurecimento adolescente e abordará paixonites, rebeldia e, é claro, humor, por mais bobo que isso possa parecer para espectadores mais "maduros".
Assim como o quadrinho que a inspirou, Ms. Marvel é espirituosa, colorida e cheia de piadas. Esses elementos não são, de forma alguma, uma fraqueza para a série, mas sim sua principal força. Sem eles, o criativo visual e os diálogos inteligentes dificilmente veriam a luz do dia e o público receberia mais um seriado genérico de super-heróis feito à toque de caixa só para prender a atenção dos fãs.
Essencialmente, gibis de super-herói sempre foram bobos em diferentes níveis. Mesmo roteiristas celebrados por suas histórias adultas, como Alan Moore, Neil Gaiman e Grant Morrison, souberam equilibrar a fantasia divertida dessas figuras mascaradas que saltam de telhado em telhado e, nem por isso, deixaram de entregar uma narrativa madura. Mesmo que mais focada na comédia, Ms. Marvel mantém esse mesmo equilíbrio, usando do humor e da paleta colorida para falar de questões como racismo, pertencimento e autodescoberta para um público jovem que se identifica com sua protagonista.
É claro que esse humor - ou mesmo a mensagem que traz consigo - não vai agradar a todos. Mas atacá-lo não faz de ninguém mais ou menos fã do que aqueles que o apreciam, especialmente quando ele está presente em propriedades intelectuais construídas para proporcionar momentos de leveza e diversão para seu público. Ao contrário do que alguns comentários apontam, a bobeira e a explosão de cores de Obi-Wan Kenobi e Ms. Marvel reforçam seus espaços dentro de suas respectivas franquias e o comprometimento de suas equipes em levar ao espectador as histórias condizentes, em tom e execução, àquelas originalmente idealizadas por seus criadores.
Todos nós somos bobos de vez em quando - especialmente quando nos divertimos. Por que, então, é tão difícil aceitar que produtos feitos sob medida para nos entreter também contenham uma dose saudável de bobeira?